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Chega desta m�sica de merda.

Somos o clube da terceira idade!

N�o, parecemos uns pimpolhos.

REGRESSO A �TACA

Que te ofereceu ele?

T�pies, olha que bem...

Grande escolha, Amadeo!

Aqui ningu�m conhece T�pies.

Eu pr�prio n�o conhecia bem.

Mas o ano passado visitei a Funda��o
em Barcelona, e sabes que mais?

Ia caindo de cu.

Sabes o que diz o fulano?

Que pintava assim,
porque era m�ope e n�o via bem.

Manda-o ter comigo que eu curo-o.

N�o tinhas deixado de fumar?

Sim, companheiro, mas cheguei aqui
e deu-me uma vontade danada.

Que grande lata!

Comecei a fumar por culpa dele.

Depois ele largou os cigarros
e eu fiquei agarrado.

O cigarro deste perturbava-me,
e j� h� dez anos que deixei de fumar.

Nove anos.

Raios partam isto.

Torn�mo-nos uns velhos de merda,
� ou n�o �?

As festas que faz�amos aqui em cima!

Quando n�o havia rum,
beb�amos �gua.

Da torneira.

Lembras-te do dia em que sa�ste
para ir � procura de um charro?

Atravessei meia Havana,
n�o houve meio de encontrar erva.

Fic�mos pendurados.

E o medo que eu tinha de ser apanhado
com a m�o na massa, lembras-te?

Caguinchas.

Incr�vel.

Sabem o que � incr�vel?

A primeira vez que vi
fumar haxixe foi em Espanha.

Desmaiaste!

E deste-lhe?

Dado ao v�cio como sou,

se tivesse experimentado
tinha ficado agarrado.

Pois olha que j� n�o somos
subdesenvolvidos.

A gandulagem do meu bairro
toma umas pastilhas esquisitas.

E quando as misturam
com regaetton e rum,

ficam a mil, a cem mil.

J� agora, de quem foi a ideia
da marijuana?

Foi minha?

N�o! N�o!

Tamb�m j� te esqueceste,
que a Angela ficou uma fera,

porque este maluco levou a coisa
a s�rio e saiu para ir a arranjar?

� verdade.

Ficou virada do avesso.

Era muito puritana.

N�o foi nessa noite que tu
e a Angela se embrulharam?

N�o, foi em casa
da Margarida do Cu Grande.

Porra, a Margarida do Cu Grande!

N�o me lembrava dela.
Mas ele lembra-se!

Babava-se com o cu dela!

Diz l� que n�o!
- Sim, sim.

E tu, n�o? Nem o Eddy?
Nem este?

N�o foi porque ela
n�o te ligava pevides,

que naquela noite
engataste a Angela?

Passou-vos tudo ao lado.

Foi nessa noite que voc�s souberam,

mas a coisa j� durava
h� algum tempo.

N�o me surpreende,
este sempre foi muito misterioso.

Pois, sempre foi muito misterioso.

Um puro mist�rio.

E aquele, saiu-me um belo hip�crita.
Hip�crita!

J� estavas com a Xiomara
e andavas metido com a Cu Grande.

E quem � que n�o gosta
de cus grandes?

N�o te rias!

N�o te rias, porra,
sempre foste um grande descarado.

Que � que eu fiz?

Fiz o qu�?

Sempre colado a mim
com a tua coisa.

N�o houve festa
em que n�o te viesses colar a mim!

Tu adoravas.

Nunca quiseste saber
se eu tinha um namorado,

se tu tinhas uma namorada.

Que querias que fizesse?

Andavas sempre ocupada,

n�o te armes agora em santa,
se n�o fazemos as contas.

P�ra.
- Era soma e segue.

Lava l� a roupa suja.
- Est� bem.

Lembro-me bem, havia o Rom�n.
Lembras-te do Rom�n?

O grande Tato.
- Espera, Tato...

Tato, o mand�o.
- � verdade, sim.

O Luisito.

Ah, agora o Luisito d�-te n�useas.

Otto, o da mota, lembras-te?

Lembro-me do Otto!
Desse lembro-me eu.

Alto a�.

Esse tipo era... m�tico.

Tinha uma Harley Davidson.

N�o digas disparates!
Tinha uns dentes de Dr�cula.

Lembro-me bem dos dentes dele.
- Tens � inveja. Era o m�ximo.

Era um vampiro.

Um verdadeiro vampiro.

Sil�ncio, por favor.

Adoro esta can��o.

Lembram-se de quando fomos
ver o Serrat ao Parque Lenine?

Ainda sinto as dores nos p�s.

Julguei que a Xiomara
te matava nesse dia.

Porqu�, que fiz eu?
- Ainda perguntas ''porqu�''?

Porque estavas completamente b�bedo.
Fizeste-nos perder o transporte,

tivemos de voltar a p� para Mantilla,
ainda sinto as unhas dos p�s.

Est�s sempre a inventar coisas.

� verdade, Rafa. A Angela ficou
com bolhas, parecia leprosa.

Fui por vossa causa.
Nunca gostei do tipo.

� preciso ter lata.
Toda a gente gostava do Serrat.

N�o, eu n�o.

Eu tamb�m n�o gostava.

Agora ou�o
pelas recorda��es que me traz.

Fomos a esse concerto
porque o Eddy era f�.

Eddy e Serrat!

O Eddy gostava mais da trunfa
do Serrat que das can��es.

Dava o que fosse preciso para ter
o cabelo t�o comprido como ele.

Voc�s adoram falar do Eddy.

Quando ele est�,
� ele quem fala dele,

e quando n�o est�, falam voc�s.

Lembras-te do trabalho que ele tinha

para esconder o comprimento
do cabelo na escola?

Posso l� esquecer-me!

Colava-o � cabe�a com sab�o.
Perdia meia-hora nisso.

Quando o ia buscar para sairmos,
cheg�vamos sempre atrasados.

Parecia um c�o molhado.

As coisas que eles fizeram
para nos tramarem a vida.

Nada de cabelo comprido,
nada de cal�as justas

e nada de m�sica americana!

Desvios ideol�gicos!

E uma prova de imaturidade pol�tica!

E quando decidiram que ouvir
a m�sica dos Beatles era... Como era?

''Penetra��o cultural''.

Essa bateu tudo.

Trataram-nos abaixo de c�o,
meus caros.

Eu sempre tive notas altas
a todas as disciplinas,

e nunca me deixaram
ser aluno de quadro de honra.

N�o te rias, porra!
E s� porque gostava dos Beatles.

Claro, Rafa, eras um verdadeiro
''penetrado cultural''.

Se te tivessem apanhado
a ouvir os Rolling Stones,

tramavam-te na mesma,

mas teria sido por uma boa causa,
por boa m�sica.

As tretas que tu dizes,
que conversa de merda!

Vais-me dizer a mim que ''Abbey Road''
n�o � o m�ximo do m�ximo?

� m�sica de chavalitos.
- �, �!

Continuam nessa, acham bem?

� ele quem me d� corda.

Um momento, minha menina,

queres a minha mais sincera
e autorizada opini�o?

N�o h� nada mais s�rio
do que ouvir m�sica.

E aqueles cabr�es sabiam
muito bem isso, acredita.

Faziam-nos uma lavagem cerebral
com m�sica popular de merda.

E depois, toca a dar ao couro,
tomem l� trabalho volunt�rio:

escola no campo,

colheitas de cana de a��car,
citrinos, tabaco.

E um par de sapatos por ano.

Porque o homem novo
forjava-se pelo estudo,

pelo trabalho,

e pela espingarda!

Al�m do mais, todos os cubanos
tinham de saber disparar,

e disparar bem!

Esperem l�!

Eu da ''escola no campo'', gostava.

Divert�amo-nos � brava!

E aqui n�o parecem voc�s tristes.

Olhem.

Pod�amos fazer o que nos dava
na gana. N�o era assim t�o mau.

Est�s a brincar?
''N�o era assim t�o mau''?!

Nem me quero lembrar, dois meses
por ano a trabalhar nos campos!

� a Lily?

A Lily.

Lembras-te?

Era um p�ssego!

Olha, olha a personagem!

N�o me digas que � o Eddy.

Olha, o tractor!

Contem-me l� o dia do tractor,
eu n�o estava!

Por pouco n�o se matou,
quando se meteu por aquele barranco.

E depois, o dono do tractor
ia-o matando com a catana!

A cara do Eddy, s� vista!

Agora parece tudo muito agrad�vel.

Mas quando t�nhamos
de nos levantar �s duas da manh�

e ir para os campos
com o frio que fazia...

E estava sempre esfaimado!

Era um horror.

Tamb�m sempre foste
um grande comil�o.

Por falar nisso,

ainda consigo sentir o cheiro
dos campos de cana de a��car

pela fresquinha.

Como se chamava aquele tipo
que estava t�o desesperado

que deu uma catanada nele pr�prio,
a ver se o mandavam para casa?

Perdomo.

Perdomo, o Teso.

A gracinha custou-lhe um tend�o,
ficou coxo para sempre.

Vi-o no outro dia, e continua teso.

Agora � cobrador
da companhia de electricidade.

Aldo, o Perdomo n�o era maricas?

Eu acho que era.

Sabes o que � o pior de tudo?

Nessa �poca, pens�vamos
que tudo aquilo era normal.

N�o podia ser normal.
Era l� normal!

Tania, ainda h�-de chegar o dia
em que deixas de cagar em tudo.

E tu, cagas em qu�?

Porque, quando foste embora,
deixaste um monte de merda.

Deves ter ficado completamente seco.

Tania,

� melhor pararmos por aqui.

Pode ser?

Lembram-se disto?

Olhem o cabelo do Eddy!

� melhor n�o ver,
porque vou passar um m�s

sem conseguir olhar
para o espelho.

Eras t�o gira, muito gira.

Olha para a tua cara!

Pareces um mosquito.

O tempo � implac�vel!

Est�s a ver o bairro?

Olha para a pra�a.

Tinha a sensa��o de que era
mais longe, est� mais pr�xima.

Est� no mesmo s�tio.
Isso n�o mudaram eles.

E a varanda do Ram�n.

O Ram�n morreu h� uns dez anos.

O Yoenis vem?

Vem, mas sabes como s�o os mi�dos
hoje em dia. Nunca se sabe.

N�o te iludas.

N�o h� mi�do que queira vir
a uma festa de velhos.

Que merda, Tania.

� verdade.

Se eu tivesse vinte anos,
ningu�m me apanhava aqui.

Ei, pessoal!

Eddy, que bom ver-te aqui,
companheiro!

Estava em pulgas para te ver.

Trouxeste whisky?

Do melhor, directo dos Estados Unidos!
Disto n�o encontras tu aqui!

At� que enfim, Amadeo,
l� te decidiste a vir!

Rafa, estava cheio
de vontade de te ver!

Pois olha que escondes bem!

Agora �s completamente careca?

Ei, a doutora tamb�m veio.

Outra vez em boa forma.
Est�s boa para mais umas voltas.

Sempre fui boa.

Bela pulseira!
Deu-te para a religi�o?

H� muito tempo, meu querido.

Prego a fundo na feiti�aria!
Oxum ou lemanj�?

� agora que vamos
construir o socialismo,

tudo perfilado atr�s dos orix�s!

Desculpem o atraso, amigos,
fiquei retido numa reuni�o.

At� sa� cedo. Neste pa�s
h� sempre mais uma reuni�o.

E que eficazes que elas s�o,
as reuni�es.

Se fossem, j� t�nhamos
dado cabo do imperialismo

e de todos os seus lacaios!

E constru�do o comunismo,
o est�dio mais alto do socialismo!

O �ltimo degrau
do progresso social da humanidade!

Rafa, para ti, mas com calma.

N�o me esque�o daquele dia
em que fomos ver o Serrat.

Lembram-se?

Sim, j� fal�mos nisso.

Que treta, est� a tocar!

S� um momento, companheiros!
Chamada importante.

� o meu patr�o.

Meus caros...

Nunca pude beber whisky deste
em Espanha.

E olhem que bebia muito whisky.

E para qu�?

Para afogar as m�goas
ou para esquecer os remorsos?

Tania, por favor...

J� sei, tudo bem.

Eu calo-me.

O que se passou
entre mim e a Angela...

N�o, o que se passou com a Angela.
Contigo n�o se passou nada.

Eu sei que h� perguntas terr�veis,

perguntas que nos gelam o sangue.

Mas diz-me uma coisa:

onde andavas tu,
quando a Angela estava a morrer?

N�o tens ideia do que foram
os �ltimos meses da Angela.

Mas eu sei.

Tu n�o fazes ideia nenhuma.

Tania, ouve o que te digo...

N�o, n�o me vais dizer nada!

N�o tens o direito.

Quem pensas que �s?
- Ouve, por favor.

Deixa-me em paz!
- Aguentem os cavalos!

N�o estamos aqui para acertar contas.

J� chega!

Quem joga hoje?
H� algum jogo?

Vou perguntar ao especialista.

J�lio C�sar!

Quem joga hoje?

Industriales contra Santiago!

Estou danado por ver
um jogo de basebol.

Em Espanha n�o sabem
o que � um home run.

P�ra l� de falar de Espanha!

Tania, passei l� um ter�o
da minha vida.

Se vos falo disso
� porque voc�s s�o meus amigos.

Aqui, toda a gente pensa que
as coisas s�o f�ceis no estrangeiro.

Coitadinho.

Tania, o primeiro Inverno
que l� passei,

devo-o a umas freiras,

que me salvaram quando me ofereceram
o casaco de um tipo que morreu.

E tu dormias com as freiras,
meu cabr�o?

Por favor, Eddy.

Digo-vos que n�o foi f�cil.
Eu conto.

O meu primeiro trabalho
foi como guarda-nocturno num armaz�m.

Vivia l�,

num canto onde se armazenavam
as paletes dos monta-cargas.

Lavava-me em casa de um marroquino.

Bem, uma casa
que n�o passava de um quartito.

Era guarda durante o dia.
Ajudou-me bastante.

O frio que eu passei naquele armaz�m!

Depois, comecei a trabalhar de dia
com o Jes�s,

um cubano que conheci,
pintor da constru��o civil.

Sem deixar de trabalhar � noite,
claro est�.

Depois as coisas foram
melhorando aos poucos.

O Jes�s conhecia uma advogada,
e fiz um acordo com ela:

eu pintava-lhe a casa, ela ajudava-me
a conseguir o visto de trabalho.

Esse Jes�s caiu-te do c�u!

Bem podes diz�-lo.
Foi o meu salvador.

Mas era um filho da puta,

pagava-me metade
do que devia pagar-me.

Que estafermo!
E eu que acreditava em Jesus!

O pior � que me convenci
que era uma coisa normal.

Era estrangeiro
e tratavam-me como tal.

Mas agora j� �s espanhol, n�o?

Sim.

Claro, espanhol retinto.

Depois de conseguir os pap�is,
comecei a trabalhar como professor,

e as coisas melhoraram.

Uma verdadeira telenovela mexicana.

Fim da hist�ria, minha menina.

S� quis que me ouvissem.

E?

Come�amos a chorar?

Anda l�!
Pelo menos safaste-te.

L� podes viver do teu trabalho.
Aqui, os professores mal sobrevivem.

Pronto, acabou.
N�o vos chateio mais.

N�o digo mais nada.

Porque havia de me queixar?

Agora tenho um bom casaco,
tenho um tecto,

tenho um computador
com Internet 24 horas por dia.

Estive em Fran�a, na Holanda,
e at� em It�lia.

Mas sabem que mais?

Mesmo que n�o queiras ouvir?

Sinto-me completamente sozinho.

Aborre�o-me.

Era a voc�s que queria contar
tudo o que vi em It�lia.

E o pior de tudo

� que n�o consegui
voltar a escrever.

N�o consegui voltar a escrever a s�rio.

Nem eu a pintar.

A s�rio.

No entanto, eis-me aqui.
N�o me fui embora.

E porque n�o pintas como antes, Rafa?

Eu sei que tudo vos parece
muito simples.

Mas tu sabes.

Quando as coisas se
escangalham aqui dentro,

� muito dif�cil consert�-las.

No meu caso,
a ruptura parece definitiva.

Mas escreveste uma pe�a de teatro.

Escrevi uma pe�a de merda.

E que tinha quase terminada
quando sa� de Cuba.

No fundo, creio que tinha medo
de ser como os outros.

Aqueles que aqui n�o eram ningu�m,

e que, quando foram
para o estrangeiro,

come�aram a inventar hist�rias
da treta sobre a vida aqui.

''Cuba � um pa�s da humilha��o,
da mis�ria, da persegui��o...''

Podias ter escrito
sobre o cabr�o do Jes�s.

Ou sobre o marroquino que te ajudou.

Sei l�, sobre o que estavas a viver.

Foi o que fiz.

Foi no que pensei, escrever
sobre as coisas que via em Espanha.

Mas que tenho eu a dizer de Espanha?

Vivo l� h� dezasseis anos
e continuo sem perceber nada.

Comecei a escrever tr�s romances,

cada um pior que o outro.

Tudo o que me sa�a
era amargura, raiva.

N�o � sobre o que quero escrever.

Seria normal que falasses disso.

A amargura, a raiva.

A vida tamb�m � isso.
Foi isso que deixaste para tr�s.

Escuta-a com aten��o,
s�o palavras de uma especialista.

Amadeo, uma coisa � n�o quereres
escrever sobre certos temas,

outra � n�o seres capaz de o fazer.

Quando aqui estavas, escrevias,

mesmo se viv�amos na merda,
em pleno ''per�odo especial''.

As pessoas morriam de fome,
n�o tinham electricidade,

andavam loucas,
atiravam-se ao mar para fugir,

nem que fosse
em alguidares de pl�stico.

E tu escrevias.

Mas a minha vida aqui era real.

Para poder escrever l�,
tinha de recordar essa vida.

E tudo o que eu n�o queria
era recordar-me.

Queria apagar a minha mem�ria,
consegues entender?

E sem mem�ria,
como se pode escrever?

Francamente...

Estou a ouvir-te
e n�o percebo um corno.

Por que raio te foste embora,
nesse caso?

O mist�rio Amadeo!

Eu pergunto-me outra coisa.

Porque n�o voltaste
quando foi preciso que voltasses?

Diz a verdade.

Porque n�o vieste
quando a Angela adoeceu?

Ou pensaste que a esmola
que lhe mandavas

chegava para a curar do cancro?

Foi o que pensaste?

N�o trabalhava para mais nada.

Para lhe mandar dinheiro,
e para lhe mandar os medicamentos.

Dia e noite, todos os dias.
A ponto de passar eu fome.

O que eu pensava,

n�o te � poss�vel imaginar.

N�o me fa�as falar disso, por favor.

Sim...

� melhor.

Vou desligar este telefone de merda.

Se me querem apanhar,
que mandem a pol�cia.

Com o regabofe que para ali vai,
deve ter ganhado o Industriales.

E se assim �,
Havana vai enlouquecer!

Raios partam!

J� dizia o Bola de Nieve,

as melhores festas de Havana
foderam-se por falta de gelo.

Eu vou buscar.
- Deixa, vou eu.

N�o suporto aquele espect�culo.

N�o comecem a dizer mal de mim!

Coitada!

Est� mais doida que uma cabrita!

Muita gente viu os filhos partir
sem ficar assim t�o azeda.

Eu, por exemplo.
Tr�s dos meus cinco filhos partiram.

Tr�s das minhas filhas.

''Apertem os cintos de seguran�a.''

N�o sabia � que lhe tinha dado
para o folclore.

Diz que estava feita num oito
e que isso a ajudou muito.

Foi a Xiomara
quem a meteu na bruxaria.

A Xiomara tamb�m anda metida nisso?

Agora as igrejas est�o cheias,
toda a gente tem um altar em casa.

Oxal� que essa coisa dos orix�s
sirva de alguma coisa � Tania.

N�o pode continuar a dar cabo dela.

A morte da Angela
deve t�-la afectado muito.

N�o estejas sempre a falar no mesmo!

Porra, n�o posso dizer aquilo que penso?

Porque � que no sacana deste pa�s
temos sempre de dizer,

e pensar,
e fazer o que os outros querem?

Eu n�o matei a Angela.

Adoeceu, ponto final!

Eu nem sequer podia vir.

Tentaste?
- Nem sequer.

E sabes porqu�?

Porque tinha medo
de que n�o me deixassem entrar.

Ou que me deixassem entrar,
mas depois n�o me deixassem sair.

Est�s a falar de qu�?

Conheces algu�m que tenha entrado
e a quem n�o deixaram sair?

A Angela estava a morrer!

Fosse como fosse,
a Angela ia morrer, percebes isso?

Al�m disso, Rafa, a Angela
era a minha mulher, n�o a tua!

Pronto, pronto!

Se continuam com isso,
volto a ligar o telem�vel.

Que merda, olha!
Sem gelo, bota abaixo!

Tens alguma mulher, por l�?

De vez em quando,
saio com uma catal�.

Mas at� isso � dif�cil.

Qu�? Comer uma catal�?

Raios te partam, Eddy!
Estou a falar a s�rio.

L�, as mulheres
s�o mais complicadas.

Ao segundo encontro, perguntam-nos:

''A casa onde vives,
� pr�pria ou arrendada?''

E querem saber
quando nos casamos com elas.

� verdade, continuam a�.

As tipas s�o completamente medievais!

Em Madrid,

quando saio para tomar uns copos
com uns amigos,

acabo sempre a sonhar
que estou aqui em Havana,

a beber mau rum,
a ter conversas de treta,

ao sol, ao calor,

a assistir a matan�as brutais,
como aquela.

Bom, para conversas de merda,
podes contar connosco.

� o que nos resta!

Outra coisa de que n�o me esque�o

s�o as noites que pass�mos juntos
e em que quer�amos mudar o mundo.

Acredit�vamos sinceramente nisso!

J� n�o tenho idade para recorda��es
dessas, para acreditar nessas coisas.

Mas nessa altura,
em que viv�amos a mil � hora,

pens�vamos!

Somos uns velhos de merda,
mais vale reconhec�-lo.

Velhos de merda, ser�o voc�s.
Porque eu, s� se estiverem malucos!

Amadeo, deixa-te de choradeiras.

N�o sejas chato.

As coisas s�o como s�o.

A idade da feliz credulidade j� era.

Na altura,
tudo o que faz�amos era hist�rico.

� verdade, est�vamos
a escrever a Hist�ria, porra!

�ramos o farol do mundo!

� verdade.

Talvez, no fundo,
estiv�ssemos a escrever a Hist�ria.

Como queiram,
podem tro�ar � vontade,

mas deixem que vos diga
uma coisa:

quando acredit�vamos,
acredit�vamos verdadeiramente.

N�o t�nhamos outro rem�dio.

Acredit�vamos verdadeiramente!

E tu sabes que sim.

Quer�amos estudar, porque quer�amos
viver melhor e ser melhores.

At� ficaste lixado quando
n�o te puseram no quadro de honra,

por causa do teu amor
pela m�sica americana.

Lembras-te?
- � verdade, fiquei lixado.

Porque sabia que merecia
e isso deixava-me lixado.

E mais, queria ser militante
da juventude como tu e ele, ou n�o?

� como v�s, eras um crente.

Como querias tu
ser militante da juventude

se n�o sabias estar calado?

N�o s� ouvia m�sica dos Beatles,

como toda a gente tinha de saber
que ele estava a ouvir os Beatles.

Olha para mim e para o Amadeo.

Nunca tivemos problemas
com o que l�amos,

porque o faz�amos em sil�ncio.

Em sil�ncio, Rafa!

Orwell!

Cabrera Infante!

Vargas Llosa.

Vamos l� a ver se te lembras desta.

''Conversa na Catedral.''

Vamos l�.

''Da porta de La Cr�nica,

Santiago olha a Avenida Tacna
sem amor.

Autom�veis,

edif�cios assim�tricos, desbotados,

esqueletos de reclames luminosos
flutuando na neblina,

o meio-dia cinzento.

E pergunta a si mesmo:

qual foi o momento
em que o Peru se fodeu?''

Adoro-o!

Eddy, lembras-te do Perdomo Teso?

Do aleijado?

Achas que era maricas?

Era maricas, sem d�vida nenhuma,
porque nunca olhou para mim.

Adoro-te!

A experi�ncia
como crit�rio da verdade!

Larga-me, perdeste a tua oportunidade.

Amadeo, vamos l� a ver
se te lembras disto.

Tania, especialmente para ti.

Arrumas comigo.

Anda, h� vinte anos
que n�o dan�amos juntos.

Porque queres dan�ar comigo?

Porque eras minha amiga,
porque eras completamente louca,

porque eras louca
pelos Mamas & the Papas,

e porque vais ser uma louca
a vida toda.

Sabem o que diz este traste?

Digo-vos?

Que vai ficar c�.
Que n�o regressa a Espanha.

Que veio de vez.

Diz-lhes!

Diz-lhes tu!

Est�s a brincar connosco?

Meu irm�o,

a verdade � que n�o fazes ideia
de como isto est�.

Parece-me que n�o sabes
onde te queres meter.

Seja como for,

n�o vai poder ficar.

Mal o visto expire,
metem-no dentro de um avi�o,

e volta para o raio que o parta.

Eu disse-lhe
que � um disparate completo.

Ent�o, tu sabias?

N�o v�o poder expulsar-me.

Porque este tamb�m � o meu pa�s.

Compreendem? O meu pa�s!

Queres mesmo meter-te nesta choldra?

Est�s a armar-te em ing�nuo
ou em c�nico?

Se te quiserem expulsar,
n�o duvides que o far�o.

Para eles,
se te foste embora uma vez,

este pa�s deixou de ser teu!

N�o sabes isso?

N�o me chateiem mais.
Vou ficar e ponto final.

Fa�a chuva ou fa�a sol.

N�o quero saber de nada disto.

� um tremendo disparate.

Um tremendo disparate.

Diz l�, Amadeo,

quando estive contigo em Espanha,
j� estavas a pensar nisto?

Por que raio n�o me disseste nada?

Explica-te, raios partam!

N�o tenho de me explicar.

N�o tenho de vos prestar contas.

Sabem porque vou ficar?

Porque me d� na gana.

Na real�ssima gana.

Temos de fazer o que nos d� na gana
uma vez na vida.

N�o desistirmos do que queremos
por medo.

Que cretino de merda!

� verdade, meus caros,

fazer o que nos d� na gana,
uma vez que seja, na puta desta vida.

Atira-me as chaves, porra!

O que disseste, idiota?

Qu�?!

Onde raio andaste metido?!

Estive a trabalhar.

A trabalhar? A esta hora?!

A esta hora? Cabr�o!

A trabalhar � que n�o estiveste!

Estiveste com aquela puta!

Fala a voz do povo mais culto do mundo!

At� destas gritarias sentia falta.

Morro de vontade de beber um copo.

Nem penses nisso.

Amadeo, vamos falar a s�rio.

Companheiro, se ficas aqui,
tencionas viver de qu�?

De uma coisa qualquer.

Vais criar porcos?

Ou trabalhar num neg�cio clandestino,
a fazer baterias, com o Aldo?

Se � a tua ideia, olha para
as m�os dele, todas queimadas...

Deixa as minhas m�os em paz.

Rafa,

se sobrevivi ao ''per�odo especial''
e ao frio em Espanha,

n�o tenho medo
do que possa passar-se aqui.

Vou ficar porque quero escrever,

quero voltar a sentir
a sensa��o de ser escritor.

Porque a perdi h� muitos anos.

E asseguro-vos que foi a pior coisa
que me aconteceu na vida.

Acreditas que ficares aqui chega
para voltares a ser um escritor?

Por artes m�gicas?

Como com o cigarro?

Vou tentar, quero tentar.

Em todo o caso,

h� uma coisa que tens de perceber.

Este j� n�o � o pa�s onde crescemos.

Nem sequer o pa�s
que deixaste h� quinze anos.

Dezasseis.

Quinze, dezasseis, n�o � importante.

�, � mais um ano.

Est� bem, dezasseis!

Seja como for,

este pa�s n�o � o que era.

Acredita no que te digo.

� uma coisa estranha
que ningu�m sabe que rumo vai tomar.

Porra, Rafa,
� verdade que isto n�o � o para�so,

mas c� vamos sobrevivendo.

Eu n�o me queixo.

Enfim, n�o me queixo muito.

E quanto �s minhas baterias,

� verdade que me queimam as m�os,

mas � com elas que ganho a vida.

E mesmo que ningu�m queira saber,

continuo a ser o Aldo Garc�a Ferr�n!

Sou negro e n�o me importa s�-lo.

Sou engenheiro, ainda que fabrique
baterias com material roubado.

E sou cubano, vou ao est�dio ver
o Industriales perder como toda a gente.

N�s, os adeptos do Industriales,
somos puros masoquistas.

Que porra, estou farto do cheiro
do sangue do cabr�o do porco!

Tu ficas.

Ficas, tens uma epifania,
e come�as a escrever.

E publicas?

Onde? Quando?

Como?

Ou vais viver dos direitos de autor?

N�o brinques!

Amadeo, do que julgas que vivo?

Acho que vestiu a pele da puta.

Do meu sal�rio, est� visto que n�o,

porque o sal�rio
de um oftalmologista neste pa�s,

n�o d� para cois�ssima nenhuma.

Vivo do que os meus filhos
me enviam de Miami,

dos presentes dos meus pacientes:

um peda�o de queijo, um frango,
uma barra de sab�o.

Por incr�vel que pare�a,
ainda h� gente agradecida neste pa�s.

E � verdade,
isso faz de mim uma puta.

Porque as trocas de favores
s�o para as putas.

Aqui, na China, em Hong Kong.

E tu?

O que �s tu?

Com o teu telem�vel,

os teus �culos Ray-ban.

Esse teu casaco h�-de custar
mais de 100 d�lares, n�o?

E o whisky que estamos a beber
esta noite, e tudo o mais,

� o teu sal�rio que paga tudo isso?

''N�o desperdices uma oportunidade'',
como se costuma dizer.

O que tu n�o sabes � como tive
de dar com o corpo ao manifesto

para ter tudo o que tenho.

Sei, sim.

Isso tamb�m � ser uma puta, Eddy.

Conhe�o-te h� mil anos.

Vai chatear outro.
- N�o, vou continuar.

Vamos continuar com esta an�lise.

Deixa ver.

Tu dizias que querias ser
escritor e jornalista...

Talento, tens!

Mas o que �s?

Um pequeno quadro, um dirigente.

Um chefezito.

Sabe Deus as coisas
que tiveste de fazer,

quantas... tiveste de lamber,

quantas mentiras tiveste de dizer,
para chegares onde est�s.

E para p�r a cereja no topo do bolo,

deves ter uma conta banc�ria
escondida algures no estrangeiro,

e quando as coisas te correrem mal,

piras-te.

Come�as a viver com uma das tuas ex,
e com as tuas filhas, claro.

De que raio est�s tu a falar?

Vais dizer que n�o tens
uma conta banc�ria?

Que n�o �s um corrupto?

� portanto o que todos voc�s
pensam de mim?

Voc�s, que passam a vida
a lamentarem-se.

Este,

porque j� n�o pode pintar
como pintava,

e agora pinta umas merdas coloridas
para as vender por uns d�lares.

O Amadeo, porque n�o consegue
escrever l� onde est�,

ou teve medo do que escrevia,

e porque as espanholas
s�o muito complicadas, etc. e tal.

E tu, Tania,

tu,

queimaste as pestanas a estudar

para no fim te tornares
numa m�dica frustrada.

E deixaste os teus filhos
irem embora, porra!

Agora est�s t�o azeda que n�o
encontras ningu�m para uma pinocada!

E o oportunista descarado sou eu?

� verdade!

Prefiro ser um oportunista descarado,

do que passar a puta da vida
a lamentar-me e a arrepender-me.

Como se algu�m vos tivesse
roubado as vossas vidas.

Se vos roubaram a vida,

foi porque voc�s permitiram
que ela vos fosse roubada!

Vou-me p�r na alheta!

Eddy, espera l�.

Eddy!

Solta-me, Aldo.

Que porra, companheiro.

Sabes porque te acontecem
estas coisas?

Porque �s um idiota de merda.

Um idiota de merda, tamb�m?
- Sim.

E sabes porqu�?

Porque criaste a porra
desta personagem, de b�rbaro.

Est�s sempre a falar das tuas viagens,
das coisas todas que tens.

Cala-te!

Eu sei que tu n�o �s assim.

E os outros sabem-no
tamb�m como eu.

Mas sempre achaste que
eras melhor do que n�s.

Isso � mentira, Aldo!

Nunca achei nada disso.

Pois olha, � o que parece.

J� acabaste?

Podes soltar-me?

Esticaste-te.

Um dia algu�m tinha de lhe dizer
umas verdades.

Ainda queres que te agrade�amos?

Que se passou?

O Eddy enfureceu-se e foi-se embora.

Que lhe fizeram?

Nada, Fela, um disparate.

N�o, se fosse um disparate,
n�o se teria ido embora.

A s�rio que n�o foi nada.
- Est� bem, n�o me digam nada.

Voc�s sempre foram insuport�veis
uns com os outros,

e resistiram, continuam amigos,
como h� quarenta anos.

Valer� a pena darem cabo disso
por um disparate qualquer?

Mam�...
- Deixa-me acabar.

O facto de o Amadeo estar c�
� o mais importante.

A amizade � o mais importante.

� um privil�gio.

J� disse o que tinha a dizer.

Vou ver os meus feij�es.

Agora sirvam-se voc�s.
N�o sou nenhuma criada.

E eu a pensar que nos ias servir tudo!

Passa-me a mandioca, est� a�.

Mas que mesa t�o bonita,
e com todos os meus meninos!

Gra�as a ti.

Desculpa, mam�, esqueci-me.

Sabem qual � o segredo
do meu feij�o preto?

Cominhos?
- N�o! Nada disso.

O azeite que ponho no fim!

Da garrafa que o Eddy
me ofereceu aqui h� tempos.

Azeite do bom.

Venha comer connosco.
- N�o, querido.

�s 11h da noite? Nem pensar!

Sabem, comi umas malangas,
n�o preciso de mais nada.

Vais deitar-te?

N�o tarda nada.

Depois levantem a mesa
e tratem da lou�a.

Eu trato disso.
- Obrigada, querida.

Fela, continuas a ser a melhor.

Eu espero que tu sejas sempre
a mesma pessoa.

E voc�s tamb�m.

� tudo o que pe�o.

N�o fa�am barulho.
Pensem nos vizinhos, sim?

Quem pagou isto tudo?

Tamb�m foi o Eddy?

O Amadeo.
E trouxe o vinho de Espanha.

Obrigado, mano!

Tania, serves-me mais feij�o?

N�o vou passar a noite a servir.
- Por favor, est�o espl�ndidos.

Tamb�m tens m�ozinhas.

Obrigado, meu amor,
muito obrigado, �s uma querida!

Lembram-se,
durante o ''per�odo especial'',

de quando a Xiomara fazia bifes
com cascas de toranjas?

Sabiam a merda!

Mas toda a gente comia.

Aldo, quando � que come�aste
a interessar-te por cactos?

N�o fazia ideia.

Psicoterapia.

A f�brica fechou,
a Xiomara deixou-me,

o meu pai morreu.

As coisas iam de mal a pior.

E para espinhos, antes os cactos.

Aquele que me ofereceste
est� muito bonito.

Espero bem que sim.

� um acanthocalycium viol�ceo,
e dos mais bonitos.

Mas olha que ainda n�o deu
uma �nica flor.

J� te disse, p�e-no ao ar livre.
Precisa de muito sol.

N�o tenho tempo para nada.

Olha, tenho aqui um irm�o dele.

Como disseste que se chama?

Acanthocalycium.

H� doze esp�cies.
O nome comum � acanthocalycium.

Esse � o nome comum?
- �.

Imagino qual seja o nome cient�fico!

O meu chama-se Pepe.

Foi uma fase muito dif�cil.

Daquelas em que n�o se v�
a luz ao fundo do t�nel.

A Xiomara mandou-me bugiar.

Levou tudo.

Tudo.

Menos o Yoenis,
que n�o quis ir com ela.

Quando lhe perguntei
porque se ia embora,

disse-me que eu era
um falhado de merda.

Que estava cego, que n�o via
que est�vamos a morrer � fome.

Que continuava a pensar
que as coisas se compunham,

e que ela n�o ia esperar por isso
ao meu lado.

O pior � que ela tinha raz�o.

Ela continua com o italiano?

Sim.

O tipo deve ter uns mil anos,
mas n�o � um falhado como eu.

Tem dinheiro.
Enche-lhe a barriga.

Compra-lhe umas coisas.

Alguma coisa tem de encher.

Se n�o pode encher-lhe outra coisa,
que lhe encha a barriga.

Tens uma l�ngua t�o viperina.

E a Xiomara � tua amiga!

Achavam que eu ia perder
os feij�es da Fela?

Vou buscar-te um prato.

Eu sirvo.

Como vais comer os feij�es?

Em cima do arroz,
como aquele idiota de merda.

Sabes quem ganhou o jogo?

Aconteceu um milagre.
O Industriales, 6 a 2.

J� n�o era sem tempo.

Podemos ir ao est�dio amanh�?

Se quiseres, levo-te.

Lembras-te do dia
do home run do Marquetti,

em que ganh�mos o campeonato?

O de 1986.

Como podia esquecer-me?

Est� bem gravado
na minha cabe�a e no meu cora��o.

Porque n�o vamos � praia amanh�?

N�o, espera l�.

Se vamos � praia, tem de ser
com tempo. Quero ir a Varadero.

Amanh� trabalho.

Acab�mos de descobrir o �nico esp�cime
que trabalha neste pa�s, e vejam quem �.

Isso merece um brinde.

Olha quem aqui est�.

Que belo corte de cabelo!

D�-me um abra�o!

A �ltima vez que o vi
era um miudito assim.

Desculpa.

� a minha namorada, Leidiana.

� parente da Lady Di?

Quem?
- Esquece.

Lembrava-me de ti mais alto.

Encolheu com os anos.

Lembravas-te de mim?

Devias ter uns cinco anos
quando me fui embora.

Lembro-me de ti e da Angela
me levarem a Varadero.

� verdade. Tinha ganhado aquele pr�mio
liter�rio com um conto. Lembras-te?

Mas tu devias ter uns tr�s
ou quatro anos.

N�o �, Aldo?

Uns quatro, sim.
- Mais ou menos.

N�o havia uma esp�cie
de Playstation no hotel?

Este nem queria ir � praia.
Passava o dia inteiro a jogar.

Acho que era um peso
cada dez minutos.

Ia-me levando � ru�na.

A s�rio. Um devorador de moedas,
um devorador de notas!

J� comeram?
- Estamos cheios de fome.

Peguem nos bancos.
- Vou buscar pratos.

Senta-te aqui, ao lado do Amadeo.

Comecem a picar.

H� de tudo.

Yoenis, trouxe-te um presente.

N�o � nada de especial,
mas espero que gostes.

Porra, bom material!

Obrigado, Amadeo.

Olhem para aqui.

Uma contigo, Amadeo.

Deixa l� isso, Eddy.

Vamos l�.

J� est�.

Isso � que � um presente.

Mas previno-te que depois
do jantar o vai vender.

Deixa-te de merdas, Eddy.
- Conhe�o a personagem.

Nunca tive uma camisola dessas.

Quando tinha a idade dele,

dava qualquer coisa para ter umas
cal�as de ganga e um p�lo desses.

Quem quer um whisky?

Eu.

Pai, esta � a festa de que me falaste?

� sim senhor.

N�o convidaram a m�e?
Ela teria gostado.

N�o tenho tanta certeza.
- Tenho eu.

Ela teria gostado de ver o Amadeo.

Vai ter tempo para o ver.
Ele veio para ficar.

Ficar c�?

Sim.

Est�o a gozar comigo.

Vais mesmo ficar c�?

Porqu�?
- Porque sim.

Porque sou daqui,
e porque quero ficar.

Pois eu quero ir-me embora.

Agora n�o, Yoenis.

Toda a gente aqui sabe que me quero
ir embora. N�o � segredo nenhum.

Cala-te.

Aldo, deixa-o falar.

Deixa, tia.

J� disse o que tinha a dizer.

Vou dizer-te uma coisa que
te vai parecer um conselho de velha.

S� ouves se quiseres.

Aqui tens a tua m�e,
o teu pai e a tua av�.

Eles protegem-te.

� isso, sou super-protegido.

A minha m�e saiu de casa
e resolveu o problema dela.

O meu pai, a� o tens,
tem de engolir o que n�o quer.

Eu n�o posso convidar a minha
namorada para nada. Super-protegido.

Suponhamos que te vais embora.
Ainda est�s a estudar, n�o?

N�o empina nem d� ao litro.

Nem estuda, nem trabalha.

Aqui s� trabalha
quem arranja um neg�cio.

Para a merda que pagam,
s� um louco!

Eu n�o sou louca e trabalho.

Ah, n�o?
- N�o.

N�o comeces!

�s completamente louca,
louca e mais que louca!

Uma verdadeira vela de navio!

Ou�am l�,

repararam como a Lady Di
devora tudo?

Comida e whisky.

A realeza inglesa est� a mudar.

� verdade.

Estou velho,

mas expliquem-me l� como se enfiou
a Lady Di naquelas cal�as?

J� te digo.

Mudando de assunto,

quando perguntei ao Aldo
pelo Yoenis,

disse-me que ele estava bem.

N�o entendo.

Se ele chama a isto bem...

At� quando vamos ouvir
esta m�sica de merda?

At� quando eles quiserem.
Estamos em Cuba.

Bem-vindo � selva.

O Eddy arranjou trabalho
ao Yoenis num hotel.

E o mi�do - lembras-te? -

come�ou a roubar
com o tipo do armaz�m.

O Eddy teve de intervir,
porque a pol�cia ia prend�-lo.

E que diz o Aldo disso?

N�o lhe fales no assunto.

Tem passado por muitas.

Mas o Aldo d�-lhe dinheiro?

A Xiomara tamb�m,
est� sempre a dar-lhe presentes.

Para ver se o acalma,

para o impedir de se atirar
ao mar numa balsa.

� como se tiv�ssemos de comprar
a vida dos nossos filhos.

Continuem, sei do que est�o a falar.

N�o � uma trag�dia, Aldo.

Os jovens de hoje
s�o iguais em toda a parte.

Aqui, em Espanha, em Hong Kong.

Mas aqui era suposto
termos conseguido outra coisa.

O que se passa...

Porra, voltamos sempre
� mesma conversa.

Acredit�mos em tudo aquilo,

e agora damos por n�s
completamente na merda.

� o que �.

Mesmo tu, que sempre foste
o maior crente de Havana,

est�s t�o desiludido como n�s.

N�o me lixes, Rafa,
n�o fales por mim.

Est� bem.
Mas sabes que � verdade.

L� est�s tu a falar por mim.

Ouve bem o que vou dizer-te.

Eu preciso de acreditar
em alguma coisa,

ou ent�o dou em doido.

Continua a acreditar, companheiro.

Foste sempre assim.

Porque acreditavas,
foste combater em Angola.

Quando podias muito bem n�o ter ido.

Mas acreditavas que era o teu lugar.

Continuo a acreditar.

Felizmente, voltaste
para nos contar como foi.

Na verdade, nunca nos contaste nada.

N�o tenho nada para contar.

Estive em Angola e j� est�.

Vi o que se v� numa guerra.

Mas continuo a achar
que aquela guerra era justa.

Quer voc�s gostem, quer n�o.

Agora as coisas ainda est�o piores,

mas eu preciso de
acreditar em alguma coisa.

Deixem-me acreditar, porra!

Preciso de acreditar

que merecemos viver melhor
depois de tudo o que pass�mos.

Quero acreditar que o meu filho
h�-de encontrar o seu caminho.

N�o � preciso ir embora.

N�o h� raz�o para as fam�lias
se desmoronarem.

Porra, Aldo,

acorda!

Abre os olhos!

Olhem � vossa volta.

Tirem uma fotografia.

Antes que esta merda toda...

desapare�a de vez.

E tu, Aldo,

no meio destas ru�nas,

vais ser o �ltimo crente.

Eddy,

n�o sou assim t�o est�pido.

Sabem,

quando regressei de Angola,

ouvi rumores de que havia
alguns chefes por l�

que faziam tr�fico
de marfim e diamantes.

Que tinham duas ou tr�s mulheres,

e que mandavam madeiras preciosas para
Cuba, para constru�rem as suas casas.

Percebi que estava tudo estragado.

Ainda assim, continuaste a acreditar?

N�o da mesma maneira.

A feliz credulidade tinha ido
de carrinho.

H� outra coisa que nunca vos disse.

O que o meu pai me disse
dois ou tr�s dias antes de morrer.

Coitado.

Estava s� pele e osso.

Disse-me que tinha uma dor.

Pensei que fosse
uma dor causada pelo cancro.

Disse-lhe que ia tentar arranjar
um pouco mais de morfina.

Mas ele disse-me que n�o,

e tocou no peito.

Ou no que ainda lhe restava de peito.

Disse-me que era outra dor.

A dor de n�o saber
se se tinha enganado,

ou se o tinham enganado,
o que ainda era pior.

Disse-lhe que esquecesse essa dor.

Que n�o se tinha enganado.

Que, pelo menos ele,
n�o se tinha enganado.

Fizeste bem.

O teu pai era um bom tipo,
um tipo com tomates.

Um crente digno de respeito.

Imaginam se ele ouvisse
o Yoenis a falar?

Ouve,

o teu pai acreditava
naquilo que tinha de acreditar.

Com o Yoenis, � diferente.
Olha para o lado positivo.

Ele j� n�o tem de se atirar ao mar
para sair daqui.

S� precisa de um passaporte.

O �nico problema
� o visto para o pa�s de destino.

E o dinheiro.
- Claro.

Mas est�s a perceber
o que quero dizer.

Comigo, n�o pode contar.
Eu n�o tenho dinheiro.

Conta com o tio Eddy.

S� nos faltava esta.

Os apag�es n�o tinham acabado?

Olha, chegou a luz!

Tira-me isso da frente.
Que raio!

Tira-me isso da cara,
parece um interrogat�rio!

N�o � preciso usar as minhas baterias!

V�em que ser um chefezito
tem as suas vantagens?

T�m telem�veis gratuitos.

A luz da chefia!

Foi a minha �ltima exposi��o.

At� saiu uma nota num jornal.

Quando foi?
- No ano passado.

Mas foi uma exposi��o de merda,
numa galeria de merda.

A exposi��o que ia fazer
em Paris, em 1998,

essa teria sido a s�rio.

Empenhei-me a fundo,
e por minha conta, sozinho,

quando as coisas aqui
estavam mesmo m�s.

Trabalhei como uma besta,
lembras-te?

Pintei todas aquelas telas.

Creio que foram as melhores
que pintei na puta da minha vida.

E que se passou, que te disseram?

Nada.

Foi o pior de tudo.

Que o curador fizera a sua escolha
e que a minha obra ficara de fora.

E n�o falaste com ele?
- Para qu�?

Sabia que a quest�o n�o era o curador.
Ele adorava o meu trabalho.

Algu�m acima dele
n�o me quis na exposi��o.

Por inveja, ou para favorecer
um amigo qualquer...

� sempre a mesma merda.

Ainda por cima, havia uma galerista
em Paris interessada no meu trabalho,

souberam disso, e pronto...

J� conhecia este.

Pintaste-o antes de me ir embora.

� muito bonito.

Porque n�o continuaste a pintar assim?

Porque n�o podia.

Mataram a vontade.

Fiquei com uma depress�o tremenda
e comecei a beber todos os dias.

Nessa altura pouco vos via.

A minha mulher n�o me suportava,
eu pr�prio n�o me suportava.

E o que se passou
com a galerista de Paris?

Morreu.

Num ''acidente''.

Porra, Rafa,
parece uma trag�dia grega.

E tudo isso aconteceu em 1998?

Pouco depois de te teres ido embora.

Foi o ano mais negro da minha vida.

Mas n�o me dei por vencido.
N�o iam acabar comigo!

Comecei a pintar umas maluqueiras.

Depois vim por a� abaixo.

Ningu�m queria mostrar o meu trabalho.

N�o tinha convites de nenhuma galeria,
nem aqui nem no estrangeiro.

As editoras deixaram
de me pedir ilustra��es.

Fui-me completamente abaixo.

S� queria mesmo morrer.

Quase o conseguiste.

Felizmente, conheci a Karelia.

Encontrei um �ptimo m�dico,
e deixei de beber.

A Karelia tamb�m me levou � bruxa.

� verdade.

A ver se tinha ajuda do al�m, sei l�.

Mas n�o fiquei muito convencido.

Sabia que o meu problema
n�o se resolvia com magia negra.

Depois quando recomecei a pintar,
j� n�o era a mesma coisa.

A sensa��o era a de que
me tinham mudado o mundo.

Ent�o, comecei a borrar telas.
Com muita cor!

Muita cor! Muita.

� a merda que continuo a fazer.

O mais doloroso � que se vende.

Barato, mas vende-se.

Mas pintas. Ou n�o pintas?

N�o � pintura!

Borro umas telas para ganhar dinheiro.

Como uma puta!

H� algo que n�o me sai da cabe�a
h� dezasseis anos.

Quem devia ter-se ido embora, era eu.

Eu, o rebelde.

Eu, o tagarela!

Por que raio foste tu embora
da maneira que foste?

Estavas no grupo de teatro, escrevias.

Quando havia papel, publicavam-te!
Porque a ti, publicavam-te.

� verdade, Amadeo.

Na altura, podias entrar e sair
quando querias.

Por que raio te foste embora?

Porque tinha medo.

Est�s a falar de qu�?
Que medo?

O mesmo medo que converteu
o Rafa num alco�lico.

O medo que n�o o deixou voltar
a pintar como pintava.

O mesmo medo que te fez
deixar de escrever, Eddy.

Isso n�o � verdade.

Eu nunca teria sido escritor.

Tu ias ser o melhor de todos,
e sabe-lo bem.

O que se passa � que tiveste medo
do que tinhas na cabe�a.

Como este e como eu!

O medo � uma coisa lixada.

Talvez tenhas raz�o.

Mas eu n�o me pirei daqui.

Fiquei. E confrontei as coisas.

O que fiz foi dizer a mim mesmo:

''Que se foda,

se n�o posso escrever,

vou pelo menos viver.

E vou viver bem.''

E comecei a dizer que sim a tudo.

Era o que todos queriam que dissesse:

''Sim.''

Que todos diss�ssemos ''sim''.

Que levant�ssemos a m�o

e concord�ssemos com tudo.

� verdade,

nunca fui escritor.

Tornei-me num...

Como me chamaste?
Um chefezito.

Mas viajei por meio mundo.

E quando toda a gente estava
a passar mal nesta cidade,

eu vivia bem!

Sempre de carro.

De carro para o aeroporto,
do avi�o para o hotel...

� tudo uma grande merda.

Eu sou uma merda.

Deixei que me convertessem
numa merda.

� verdade.

Mas n�o me roubaram a vida.

Roubaram-me o sonho
de ser escritor, isso roubaram.

Mas a vida n�o ma roubaram!

Eddy, est�s com os copos.

N�o, Rafa.

Estou muito l�cido.

T�o l�cido, que amanh�
n�o sei onde estarei.

A que prop�sito vem isso agora?

Est�o a fazer uma auditoria
na empresa.

As coisas est�o um bordel.

J� h� dois contabilistas na pris�o.

Est�s metido ao barulho?

Sim, n�o, depende.
- Sim ou n�o?

Sei precaver-me.

Mas neste pa�s, para resolver seja
o que for, temos de sujar as m�os.

Deixam-nos faz�-lo.

E depois tramam-nos.

Que pensas fazer?

Que posso eu fazer?

Que posso fazer?

Esperar?

Ou vou ao bruxo da Tania,

a ver se me garante protec��o,
uma purifica��o, sei l�.

Ou...

Achas mesmo que o Eddy
tem uma conta no estrangeiro?

De pessoas como o Eddy,
podemos esperar tudo.

N�o fa�o ideia.

Achas que pode ir preso?

Sabe Deus no que se meteu agora.

Pensei muito em ti quando soube
que os teus filhos partiram.

S�o quase uns homens.

S�o uns homens, ainda que eu continue
a pensar neles como crian�as.

No dia em que o pai deles
apareceu l� em casa,

dizendo-me que queria a minha
autoriza��o para os tirar do pa�s,

n�o imaginas as coisas
que me passaram pela cabe�a.

Como p�de ele pensar

que eu autorizaria
que mos levasse daqui?

N�o tinha com quem falar.

Comecei a pesar os pr�s
e os contras...

A Angela j� n�o estava.

Tu tinhas ido para o raio que te parta.

O Eddy estava no mundo dele.

O Rafa estava entregue ao alcoolismo.

E com o negro n�o podia falar,

porque sabia que me diria:

''N�o deixes que te levem os mi�dos.
N�o fiques sozinha.''

Quando os viste pela �ltima vez?

Faz...

Perdi a conta.

Eles mandam-me dinheiro...

Que estou eu a dizer, porra?

N�o me mandam dinheiro nenhum,

e eu n�o tenho dinheiro
para os ir ver.

Percebes?

Nem sequer me convidam.

Quando viajam,
n�o fa�o ideia onde est�o.

N�o sei.

Muitas vezes
pensei com os meus bot�es...

Meu Deus.

Sentimos vontade de morrer.

E sabes qual � a pior parte?

N�o morremos.

Ficamos aqui.

Cr�s que tomaste a decis�o certa?

Nunca sabemos
se tom�mos a decis�o certa.

Como, com a dor que sentimos aqui,
e que nos impede de viver?

Achas que posso viver com isto?

Merda!

Quando parti naquela viagem,

n�o sabia se ia ficar l�.

Foi por isso que n�o
me despedi de voc�s.

Mas mesmo que soubesse que ia ficar,

� prov�vel que tamb�m n�o
vos tivesse dito.

Claro.

Tinhas medo que te denunci�ssemos?

N�o.
- N�o?

N�o, n�o.

Porque ia prejudicar-vos.

A Angela sabia que era poss�vel
que n�o regressasse.

O mais duro foi partir sem ela.

Mas juro-te pela minha m�e, Tania,
eu n�o podia fazer outra coisa.

N�o podia voltar.

A Angela sabia que eu n�o podia voltar.

Quero que me expliques uma coisa
que sempre me encanitou.

Diz-me como conseguiste

que aquela mulher,
nem nos seus piores momentos,

tenha dito que eras um filho da puta
que a tinha abandonado?

Diz-me.

Escuta, Tania...

N�o digas nada.

Estou cansada!

Passaste a noite a tentar explicar-me
o que n�o podes explicar.

Vou-me embora.

Vou-me embora, pessoal.

Levas-me a casa?
- Queres ir?

Eu tamb�m vou.

Qu�, j�?
- Estou exausto.

Esperem um pouco, por favor.

Quero falar convosco.

Rafa, se fiquei em Espanha
foi para n�o te arranjar problemas.

Para n�o te trair.

Qu�?

N�o sei se voc�s se recordam,
mas, em 1994,

escrevi uma pe�a para um grupo
de teatro latino em Nova lorque,

clandestinamente.

Cobrei-lhes 500 d�lares.

E n�o tinha autoriza��o para o fazer.

Um vez, numa noite de copos,

pus-me a falar disso
para quem quis ouvir.

Poucos dias depois,

veio ter comigo uma mulher
que me disse que se chamava Gladys.

Sem mais nem menos.

Gladys.

Disse-me que trabalhava
no Minist�rio da Cultura.

Que sabiam que eu fizera coisas
que n�o podia ter feito.

Mas tamb�m me disse
que se cooperasse com eles,

o caso seria esquecido.

Fez-me saber

que podiam despedir-me
do grupo de teatro

e mesmo prender-me
por causa desses 500 d�lares.

Que tem isso que ver comigo?

Quando as coisas come�aram a dar
para o torto, em 1990, lembras-te?

Tu eras aquele que n�o se calava.

Muito mais do que n�s.

Dizias coisas que incomodaram
algumas pessoas.

Andavam atr�s de ti, Rafa.

Queriam tramar-te.

E?

Que tinhas tu que ver com isso?

A Gladys aparecia de vez em quando

e perguntava-me coisas
sobre as pessoas do grupo de teatro.

Coisas de merda, fofocas.

Quem era maricas,

quem roubava
os adere�os da cenografia.

Esse tipo de coisas.

Mas eu fui est�pido ao ponto
de lhe dizer algumas coisas.

Disse.

Porque tinha medo!

Fui-me enredando mais
naquele esterco, e um dia,

veio pedir-me que lhe falasse de ti.

Que lhe contaste?

Que porra lhe contaste, Amadeo?

Para sair daquela situa��o,
e para ter tempo para pensar,

disse-lhe que n�o te via
h� algum tempo,

que n�o sabia o que era feito de ti.

Mas n�o fazia ideia de como podia
sair daquela situa��o.

Duas semanas depois,
o grupo ia sair para Espanha.

A Gladys disse-me que n�o era certo
que eu tivesse autoriza��o para viajar.

Depois disse-me que ia dar-me
um voto de confian�a,

e que esperava que
eu compreendesse o seu gesto.

Que falar�amos quando
eu regressasse de Espanha.

Foi por isso que fiquei, Rafa.

N�o podia voltar por isso.

A Angela sabia de tudo.

Foi ela mesma quem me pediu
que n�o voltasse.

Quando decidi ficar, escrevi-lhe
e pedi-lhe que n�o contasse nada.

Que depois encontrar�amos maneira
de ela ir ter comigo.

Ela adoeceu.

E a verdade � que nunca contou
esta hist�ria a ningu�m.

Nem sequer a ti, Tania,
que eras como uma irm� para ela.

Nem sequer quando estava a morrer.

Imaginem,

depois de dez anos a viver em Madrid,
continuava o medo de encontrar a Gladys,

e s� de pensar nisso,
come�ava a transpirar das m�os.

Jura-me que o que est�s
a dizer � verdade.

Juro pela mem�ria da Angela.

Por que raio n�o me contaste antes?

Porque ia ser pior para os dois.

Pior?

O pior foi o que aconteceu,
raios te partam!

Foderam-te a vida
e depois foderam-me a minha.

Quem era essa cabra da Gladys
para nos foder assim a vida?!

Diz l�!

Porque n�o me contaste isto antes?

Foi a pergunta que me perseguiu
durante todos estes anos.

Agora tenho de agradecer-te?

Tenho de assumir
que ficaste por minha culpa.

Que para me ajudar,
n�o voltaste a ver a Angela viva.

Deixem l� a maldita culpa.

Ningu�m tem culpa de nada.

Como que n�o?

Pass�mos a vida a acreditar
e puseram-nos o medo no sangue.

Sabem porqu�?

Porque quer�amos acreditar,
e fic�vamos calados.

Porque t�nhamos de ser puros,
sinceros e honestos.

E os filhos da puta do costume sabiam,
e puseram-nos o medo no sangue.

Falta a melhor parte da hist�ria.

H� uns cinco ou seis meses,
no metro de Madrid,

vi uma mulher parecida com a Gladys.

As minhas m�os come�aram a tremer.

Era mesmo muito parecida com ela.

Eu n�o parava de tremer.

Era algo que n�o conseguia controlar.

Voltei a sentir o maldito medo
que me perseguira durante anos.

Apesar disso, sentei-me ao lado dela.

Perguntei-lhe se me conhecia.

Disse-me que n�o.

Perguntei-lhe se se chamava Gladys

e ela disse-me que n�o, a rir.

Mas quando come�ou a rir,
tive a certeza de que era ela.

Tive vontade de a desfazer ali mesmo.

Aquela mulher tinha sa�do do pa�s.

Aquela mulher tinha sa�do de Cuba.

A mesma mulher que me aterrorizou
por causa de 500 d�lares.

Levantei-me.

Levantei-me e fiquei a olhar para ela.

E, nesse preciso instante, percebi
que ela j� n�o me tinha em seu poder.

Que j� n�o tinha medo dela.

Creio que foi nesse momento
que decidi voltar para c�.

Para a minha casa.