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A MULHER QUE VIVEU DUAS VEZES

Dá-me a mão!

Dá-me a mão!

- Pensei que tinham passado as dores.
- Esta cinta é muito apertada.

Não tem elasticidade? Que antiquado.

Estes médicos da polícia
não têm qualquer noção de estilo.

- De qualquer maneira, amanhã é que é.
- Que acontece amanhã?

Amanhã tiro a cinta.

Vou-me poder coçar
como qualquer pessoa,

e vou atirar esta porcaria
pela janela fora.

Vou ser um homem livre.

Midge,
achas que muitos homens usam cinta?

Mais do que pensas.

Falas por experiência própria?

Francamente!
O que acontece depois de amanhã?

- Que queres dizer?
- Que vais fazer?

- Quando deixares a polícia.
- Pareces não achar bem.

A vida é tua.
Mas tu eras o jovem advogado dotado

que decidiu que
um dia ia ser chefe da polícia.

- Tive de desistir.
- Porquê?

Por causa deste meu medo das alturas,
desta acrofobia.

Acordo de noite
a ver aquele homem a cair do telhado,

tento alcançá-lo e...

- A culpa não foi tua.
- É o que me diz toda a gente.

- Johnnie, os médicos explicaram...
- Eu sei.

A acrofobia dá-me vertigens,
e fico com tonturas.

- Que altura para descobrir que a tenho.
- Não tem remédio.

Ninguém tem culpa. Desistir porquê?

Sentar-me a uma secretária?
Preso à cadeira.

- Onde pertences.
- E a acrofobia?

Imagina que estou sentado
na cadeira por trás da secretária

e deixo cair o lápis,
debruço-me para o apanhar,

e zás! Volta-me a acrofobia.

Bem, e que vais tu fazer?

Não vou fazer nada por uns tempos.

Sou um homem de meios, independente.

Bastante independente.

- Porque não tiras umas férias?
- Para esquecer?

Não sejas tão maternal.

Não vou perder as estribeiras.

Tiveste tonturas esta semana?

Estou a ter uma agora.

A música, não a achas um pouco...

O que é esta engenhoca?

É um sutiã.

Sabes o que são essas coisas,
já és homem.

Nunca vi um semelhante.

É novinho em folha.
Sustentação revolucionária.

Sem alças,

mas faz tudo o que um sutiã deve fazer.

Funciona como uma ponte suspensa.

Funciona?

Um engenheiro aeronáutico
do sul da península desenhou-o

nas horas vagas.

Uma espécie de passatempo.

Uma espécie de bricolage.

Como estás de amores?

Estou a seguir o teu raciocínio.

- Estou bem.
- Nunca mais te casas?

Sabes bem
que só há um homem para mim.

Quem, eu?
Então não estivemos noivos?

- Três semanas inteiras.
- Belos tempos de faculdade.

Foste tu quem pôs termo ao noivado.

Eu continuo disponível.
O Ferguson Disponível.

Lembras-te dum tipo na faculdade
chamado Gavin Elster?

- Que nome estranho.
- Devia-me lembrar, mas não.

Telefonou-me.

Perdi o seu contacto durante a guerra,
soube que foi para a costa leste.

Voltou. O número é da zona de Mission.

- Não é uma zona péssima?
- Talvez.

Deve estar na miséria
e quer que lhe pagues um copo.

Eu pago-lhe uns copos
e conto-lhe os meus problemas.

Mas hoje não,
e se fôssemos beber uma cerveja?

- Desculpa, velhote, tenho de trabalhar.
- Vou para casa.

Que querias dizer
com o "Não tem remédio"?

A acrofobia.

O meu médico disse que apenas outro
choque emocional a podia curar,

talvez nem isso.

Não te atires de outro telhado
para descobrir.

Acho que a consigo derrotar.

- Como?
- Tenho uma teoria,

acho que se me habituar às alturas
a pouco e pouco,

um bocadinho de cada vez...
Progressivamente. Já te mostro.

- Começamos com isto.
- Isso?

Queres começar
com a Ponte Golden Gate?

Agora vê isto. Cá vai.

Pronto. Pronto.

Agora eu olho para cima, e para baixo.

- Para cima... Não custa nada!
- Estás a brincar.

- Pronto.
- É assim mesmo.

Usamos isso. Põe aí.

O primeiro passo. Pronto.

O passo número dois.

Cá vai o passo número dois.

Pronto.
Vê, olho para cima e olho para baixo.

Vou comprar um escadote comprido.

- Cuidado.
- Cá vou eu.

Não há azar.

É canja.
Olho para cima e olho para baixo.

Como entraste
para a construção naval, Gavin?

Por casamento.

- Negócio interessante.
- Na verdade, acho-o aborrecido.

Não tens de o fazer para ganhar a vida.

Não,
mas assumem-se responsabilidades.

Os parentes
da minha mulher já faleceram,

alguém tem de cuidar
dos seus interesses.

O sócio do pai dela administra
as docas da costa leste em Baltimore,

por isso decidi que, já que tenho
de trabalhar nisto, voltaria para cá.

- Sempre gostei de cá estar.
- Há quanto tempo voltaste?

- Há quase um ano.
- E gostas?

São Francisco mudou.

As coisas que São Francisco representa
para mim estão a desaparecer.

- Como estas?
- Gostava de ter cá vivido nessa época.

A cor, a emoção, o poder, a liberdade.

- Não devias estar sentado?
- Não, estou bem.

Tive pena quando li aquilo no jornal.

E deixaste a polícia.

É uma incapacidade física permanente?

Significa que não posso subir escadas
íngremes, nem ir a lugares elevados.

Como o bar do arranha-céus,

mas há bares a nível terreno
nesta cidade.

Queres tomar um copo?

Acho que não, para mim ainda é cedo.

Acho que já falámos de tudo.

Não me casei,
é raro ver a malta da faculdade,

sou um detective aposentado
e tu és construtor naval.

Que tens em mente, Gavin?

Convidei-te cá, Scottie,
sabendo que já não eras detective,

mas queria saber
se voltarias ao trabalho

como um especial favor a mim.

Quero que sigas a minha mulher.
Não é isso.

- Temos um casamento feliz.
- Então...

- Tenho medo que lhe façam mal.
- Quem?

Uma pessoa falecida.

Acreditas que alguém do passado,
uma pessoa morta,

possa encarnar, e possuir, um ser vivo?

Não.

Se te dissesse que acredito que
aconteceu à minha mulher, que dirias?

Diria que a leves
ao psiquiatra, psicólogo

ou neurologista mais próximos,
ou talvez apenas ao médico de família.

Pedia-lhe para te examinar a ti também.

Então não me serves.
Desculpa pelo tempo que te tomei.

Obrigado por teres vindo.

- Não quis ser tão bruto.
- Eu sei que parece uma tolice.

Continuas o mesmo casmurro, não?

Sempre foste.
Achas que estou a inventar?

Não estou a inventar, não saberia como.

Ela está a conversar comigo,

e de repente
as palavras reduzem-se ao silêncio,

entra-lhe uma nuvem no olhar
e fica sem expressão.

Vai para outro lugar, para longe de mim,
torna-se em alguém que não conheço.

Chamo-a e nem me ouve.

Depois, com um longo suspiro, ela volta.

Olha para mim com um olhar aguçado.
Não sabe que esteve ausente,

não sabe dizer onde nem quando.

Quantas vezes é que isso acontece?

Cada vez mais nas últimas semanas.

E ela vagueia, sabe Deus por onde.

Um dia segui-a, vi-a sair do andar.

Uma desconhecida.
Até o andar era diferente.

Meteu-se no carro
e foi até ao Parque Golden Gate,

oito quilómetros.

Sentou-se à beira do lago,
a olhar para os pilares na outra margem,

sabes, os Portais do Passado.

Ficou lá sentada
muito tempo sem se mexer.

Tive de me vir embora,
voltar ao escritório.

À noite perguntei-lhe
o que tinha feito o dia todo.

Disse que apenas fora de carro até
ao parque e se sentara à beira do lago.

E então?

O conta-quilómetros do carro
dizia que ela percorrera 150 km.

Onde foi ela?

Tenho de saber onde ela vai e o que faz,

antes de chamar o médico.

- Já falaste com os médicos?
- Já, com cautela.

Quero saber mais, antes
de a entregar a esse tipo de cuidados.

Está bem, arranjo-te uma firma
de detectives para a seguirem.

- São de confiança.
- Quero-te a ti.

- Eu não entendo disto.
- Preciso dum amigo

em quem possa confiar.
Estou em pânico.

Estou supostamente aposentado.
Não me quero meter nisto.

Vamos a uma estreia de ópera
esta noite,

vamos jantar ao Ernie's primeiro.

Podes vê-la lá.

No Ernie's.

Nasceu a 3 de Dezembro de 1831
faleceu a 5 de Março de 1857

Diga-me uma coisa.

Quem é aquela mulher no quadro
que aquela senhora está a fitar?

É a Carlotta. Vem no catálogo.

- "Retrato de Carlotta".
- Dá-mo?

Obrigado.

Em que posso ser-lhe útil?

O hotel é seu?

De quem é o quarto de canto
do segundo andar?

Aquele canto.

Não lhe posso dar essa informação.

Os nossos hóspedes
têm direito à privacidade.

E julgo ser contra a lei.

Claro que acho que nenhum
deles se importava, mas...

Não me diga que ela fez algo de errado?

Por favor, responda à minha pergunta.

- Não imagino aquela doce rapariga...
- Como é que se chama?

Valdes. Menina Valdes.
É espanhol, sabe?

- Carlotta Valdes?
- É isso.

É bonito, não? Estrangeiro, mas bonito.

Há quanto tempo
é que ela tem o quarto?

Duas semanas, amanhã paga renda.

Alguma vez cá dorme?

Vem só para estar sentada,
duas ou três vezes por semana.

Eu não faço perguntas
desde que se portem bem.

- Devo dizer...
- Não lhe diga que eu cá vim.

Mas ela hoje não veio.

Acabei de a ver entrar.

Ela não esteve cá.

Tê-la-ia visto. Estive aqui o dia todo,

a pôr azeite nas folhas
da minha planta da borracha.

Olhe. Está a ver?
A chave dela está no chaveiro.

Pode ir lá acima ver?

- Ao quarto?
- Sim.

Claro, se me está a pedir.

- Mas parece-me uma tolice.
- Obrigado.

Ó senhor detective!

Quer vir cá ver?

- O carro dela foi-se.
- Que carro?

Conheces alguma autoridade
sobre a História de São Francisco?

É dessas saudações
que uma rapariga gosta,

nada de "Olá, estás linda",

apenas um: "Conheces alguma...?"
- Vai um copo?

- Não, obrigada.
- E conheces?

Conheces toda a gente.

- O professor Saunders, em Berkeley.
- Não é esse tipo de História.

As coisas mais insignificantes,
pessoas em quem ninguém ouviu falar.

Os Velhos e Alegres Dias Boémios
da Velha e Alegre São Francisco?

Histórias sumarentas,
tais como quem alvejou quem

no Embarcadero, em Agosto de 1879?

- É verdade.
- O Pop Leibel.

É dono da Livraria Argosy.
Que queres saber?

Quem alvejou quem no Embarcadero,
em Agosto de 1879.

Já não és detective, que se passa?

- Conhece-lo bem?
- Quem?

- O Pop Leibel.
- Sim.

Vamos. Quero que mo apresentes.
Pega no chapéu.

Não preciso de chapéu.

De que se trata?

Só um minuto!

Livraria Argosy

Sim. Lembro-me. A Carlotta.

A bela Carlotta.

A triste Carlotta.

Que tem uma casa antiga na esquina
das ruas Eddy e Gough a ver com ela?

Era sua.

- Foi construída para ela há muitos anos.
- Por quem?

Por...

Não. Desse nome não me lembro.

Um homem rico e poderoso.

- Um cigarro?
- Não, obrigado.

Não é uma história invulgar.

Veio de um lugar pequeno
ao sul da cidade.

Há quem diga que veio
de uma missão religiosa. Muito jovem.

O homem encontrou-a
a dançar e a cantar no cabaré.

Ele pegou nela, e construiu-lhe

aquela casa grande
no bairro da Western Addition.

Havia uma criança.
Pois, é isso, uma criança.

Não posso dizer exactamente
quanto tempo decorreu,

ou se foram felizes,

mas depois ele deitou-a fora.

Ele não tinha mais filhos,
a mulher não tinha filhos.

Então ele ficou com a criança
e deitou-a fora.

Naquele tempo,
os homens podiam fazer isso,

tinham o poder e a liberdade.

E ela tornou-se na triste Carlotta,

sozinha naquela casa grande,
a vaguear pelas ruas sozinha,

com as roupas cada vez mais velhas,
remendadas e sujas.

Depois passou a ser a louca Carlotta,

a parar as pessoas na rua
para lhes perguntar:

"A minha criança?

"Viu a minha criança?"

- Pobrezinha.
- E morreu?

- Morreu.
- Como?

Pela sua própria mão.

Há muitas histórias assim.

- Obrigado, fico-lhe agradecido.
- Não tem de quê.

Só um minuto.
Adeus, Pop, muito obrigada.

- Agora paga-me.
- Pago-te o quê?

- Ter-te cá trazido. Vá, conta lá.
- Não há nada a contar.

Conta,
senão ponho-te a usar cinta outra vez.

Vou-te levar a casa.

- Cá estamos.
- Não me contaste tudo.

- Contei-te o suficiente.
- Quem é o homem, e a esposa?

- Rua! Tenho que fazer.
- Já sei.

O que telefonou, o Elster.
- Sai, por favor.

A ideia é que a bela Carlotta
regressou dos mortos

e possuiu a mulher do Elster.

Não acredito!

Não é o que eu penso, é o que ele pensa.

- Que pensas tu?
- Bem, eu...

- É bonita?
- A Carlotta?

Não, a mulher do Elster.

É, pode-se considerar...

Acho que vou ver o tal retrato. Adeus.

Adeus!

Autor Desconhecido - Retrato de Carlotta

Escultura, Tapeçarias,
Mobiliário e Decoração

Muito bem. És bom no que fazes.

É a Carlotta Valdes.
Houve coisas que não me disseste.

- Não sabia onde ela te ia levar.
- Sabias disto.

Reparaste no seu penteado?

E há mais:

A minha esposa, a Madeleine,
tem várias jóias que eram da Carlotta.

Herdou-as.

Nunca as usou, eram antiquadas.
Até agora.

Agora, quando está só,
tira-as dos estojos e fita-as.

Manuseia-as com cuidado e curiosidade.

Põe-nas e vê-se ao espelho.

E entra naquele outro mundo,
volta a ser outra pessoa.

A Carlotta Valdes quem era,
avó da tua mulher?

Bisavó.
A criança que lhe foi roubada,

cuja perda levou a Carlotta
à loucura e à morte,

era avó da Madeleine.

E o Hotel McKittrick
é a antiga residência dos Valdes.

Acho que isso explica tudo. Qualquer
pessoa com um passado desses

se poderia obcecar com ele.

Ela nunca ouviu falar da Carlotta Valdes.

Nada sabe da campa na Missão Dolores,

ou da velha casa na Rua Eddy,

do retrato no Palácio da Legião de...?

- Nada.
- Quando ela vai a estes sítios...

Ela já não é a minha mulher.

Como sabes tudo isso, se ela não sabe?

A mãe dela contou-me a maior parte,
antes de morrer.

O resto descobri eu.

- Porque não contaria ela à filha?
- Medo natural.

A sua avó enlouqueceu e suicidou-se.

O seu sangue
corre nas veias de Madeleine.

Bolas, como estou a precisar disto.

Bem-vindo ao Presídio

Rua Fort Point

A minha criança...?

Não faz mal.

Já te volto a ligar.

Está bem?

Vai precisar disto.

Venha para junto da lareira,
que está quentinho.

Que faço aqui? Que aconteceu?

Caiu na Baía de São Francisco.

Tive de lhe secar o cabelo como pude.

As suas roupas estão na cozinha,
daqui a uns minutos estão secas.

Venha para junto da lareira.

Tome umas almofadas.

Pronto, aqui tem.

Quer café?

É melhor tomar um café.
Ou prefere uma bebida alcoólica?

Caí na baía e você pescou-me para fora?

É verdade.

Obrigada.

Não se lembra?

Não, eu...

Lembra-se de onde estava?

Sim, disso lembro-me, claro.

Devo ter tido uma tontura,
e depois desmaiei.

Onde estava?

Em Old Fort Point,

no Presídio. Vou lá muito.

Porquê? Porque lá vai?

Porque adoro.
É tão bonito, sobretudo ao pôr do sol.

- Obrigada pela lareira.
- Onde esteve antes?

- Quando?
- Esta tarde.

- A passear por aí.
- Eu sei, mas onde esteve mesmo antes?

Na Baixa, a fazer compras.

Tome, beba um café.

Acho que ainda está quente.

- Faz perguntas muito directas.
- Não quis ser indiscreto.

Não o foi. Apenas directo.

E que estava a fazer em Old Fort Point?

A passear.

- Também lhe agrada?
- Sim.

Onde esteve imediatamente antes?

Fui ao Palácio da Legião de Honra,
à galeria de arte.

É um sítio lindo, não é?

Nunca lá entrei, mas é lindo
quando se passa de carro.

A minha sorte foi você andar a passear.
Muito obrigada.

- Causei-lhe imenso transtorno.
- Não causou nada.

Quando...

Tinha uns ganchos no cabelo?

Os ganchos? Estão ali, vou buscá-los.

E a minha carteira, por favor.

- Tome lá.
- Obrigada.

- Não me devia ter trazido cá.
- Não sabia onde mora.

Podia ter visto no meu carro.
Não sabia qual era o meu carro?

Sabia qual era, está lá fora,

mas achei que não quereria
chegar a casa dessa maneira.

Tem razão. Ainda bem
que não me levou para casa,

não o teria conhecido. Obrigada.

Mas não nos conhecemos.
Sou a Madeleine Elster.

- O meu nome é John Ferguson.
- É um nome robusto.

- Os amigos chamam-lhe John ou Jack?
- Normalmente John.

Os velhos amigos chamam-me John,
os conhecidos chamam-me Scottie.

- Vou chamar-lhe Sr. Ferguson.
- Cruzes credo, isso não me agradaria.

Depois desta tarde,
deveria chamar-me Scottie,

até mesmo John.

Prefiro John.

Pronto, já está.
E que faz o John?

- Vagueio por aí.
- É uma boa profissão.

E vive aqui sozinho?
Não se deve viver sozinho.

Há quem prefira.

Não está bem.

Sabe, eu sou casada.

Diga-me uma coisa.
Isto já lhe aconteceu?

- O quê?
- Cair na Baía de São Francisco?

Não, nunca tinha acontecido.

Já caí ao lago de barcos a remos,
quando era pequenina.

Uma vez caí ao rio,
a saltar duma rocha para a outra.

Mas nunca tinha caído
à Baía de São Francisco.

- E o John?
- Para mim também foi a primeira vez.

Vou-lhe buscar mais café.

- Que aconteceu? Ela não está em casa.
- Não, ela está bem.

- Está aqui, já a levo a casa.
- Que aconteceu?

Caiu à baía.

- Magoou-se?
- Não, vai ficar óptima.

Mas não sabe o que aconteceu,
compreendes?

A Madeleine tem 26 anos.

A Carlotta Valdes
suicidou-se com 26 anos.

Espera só um minuto.

Então, sempre era um fantasma?

E foi divertido?

É para mim?

- É. Olá.
- Olá.

Fiquei preocupado consigo,
não se devia ter escapado.

De repente senti-me tão parva.

Queria levá-la a casa. Está bem?

Óptima. Não houve consequências.

- A água estava fria, não estava?
- Se estava!

Que coisa terrível que eu fiz.
Foi tão simpático.

É um agradecimento formal,
e um pedido de desculpa.

- Não tem nada que pedir desculpa.
- Tenho sim.

- Deve ter ficado pouco à-vontade.
- Nem pensar, gostei muito...

de falar consigo.

Gostei muito de falar consigo.

Vou ver o correio.

- Quer tomar um café?
- Não, obrigada.

Não a pude meter no correio,
não sabia a sua morada.

Mas tinha uma referência:
A Torre Coit. Guiou-me até si.

É a primeira vez
que me sinto agradecido à Torre Coit.

- Também espero o mesmo.
- O quê?

- Que nos encontremos outra vez.
- Já o fizemos.

Adeus.

- Onde vai?
- Não sei.

- Às compras?
- Não.

- Algum sítio em especial?
- Pensei em vaguear por aí.

Era isso que eu ia fazer.

Pois é, esqueci-me.
É a sua profissão, não é?

É um desperdício nós dois...

Vaguearmos separadamente?

Só uma pessoa pode vaguear.
Duas juntas têm sempre um destino.

- Não necessariamente.
- Deixou a sua porta aberta.

Já volto.

- Que idade têm?
- 2000 anos ou mais.

- Os mais antigos seres vivos.
- Sim.

- Nunca cá tinha vindo?
- Não.

Em que está a pensar?

Em todas as pessoas
que nasceram e morreram

enquanto as árvores cresciam.

O seu nome é Sequoia sempervirens,

sempre verdes, sempre vivas.

- Não me agradam.
- Porque não?

Sabendo que tenho de morrer...

Eis uma secção de uma das árvores
velhas que foi deitada abaixo.

Os anéis brancos indicam a largura
da árvore aquando dos diversos eventos

1215 Assinada a Magna Carta
1066 Batalha de Hastings

1492 Descobrimento da América
1776 Declaração de Independência

1930 Árvore deitada abaixo

Algures aqui nasci eu,

e aqui morri.

Para ti foi apenas um momento,
nem reparaste.

Onde estás agora?

- Aqui contigo.
- Onde?

- Árvores altas...
- Já cá esteve antes?

- Já.
- Quando?

Quando nasceu?

- Há muito.
- Onde? Quando?

Diga-me, Madeleine.

Onde vai, o que a leva lá?

Não sabia onde estava
quando saltou para a baía.

Eu não saltei, eu caí - disse-me que caí.

- Porque saltou?
- Não lhe posso dizer.

- Que foi que a levou a saltar?
- Não, por favor...

Peço-lhe que não me pergunte.

Leve-me deste sítio.

Quer que a leve para casa?

Para um lugar iluminado.

Prometa-me uma coisa: Prometa-me
que não me volta a perguntar.

Porque fugiu?

Eu agora sou responsável por si.
Os chineses dizem que,

quando salvamos uma vida, somos
responsáveis por ela para sempre.

Tenho de saber.

Eu sei tão pouco.

É como se eu estivesse a percorrer
um longo corredor

que dantes era espelhado.

Ainda lá estão fragmentos do espelho,

e quando eu chego ao fim do corredor

apenas há trevas.

E eu sei que, quando entrar nas trevas,

vou morrer.

Mas eu nunca chego ao fim.
Regresso sempre antes do fim.

- Excepto uma vez.
- Ontem?

E não sabia o que aconteceu

até que deu por si comigo.
Não sabia onde estava.

E os fragmentos do espelho,
lembra-se deles?

- Vagamente.
- De que se lembra?

Há uma sala...

e eu estou lá sentada, sempre sozinha.

- E que mais?
- Uma campa.

- Onde?
- Não sei, a vala está aberta.

Estou ao lado da pedra tumular,
a olhar para dentro da vala.

- É a minha.
- Como sabe?

- Sei.
- Há algum nome na pedra?

Não, está nova, lisa e à espera.

E que mais?

Esta parte é um sonho, acho eu.

Há uma torre e um sino,
e em baixo um jardim.

Parece ser em Espanha,
um aldeia em Espanha.

Subitamente, desaparece.

- E um retrato? Não vê um retrato?
- Não.

Se pudesse encontrar a chave,
o início, e juntar as peças.

E resolver o assunto com a explicação?

Mas sabe, há realmente uma explicação.

Se eu estiver louca,
isso seria uma explicação, não?

Eu não sou louca! Eu não quero morrer!

Há alguém dentro de mim,
e ela diz que eu tenho de morrer.

- Scottie, não me deixe ir.
- Estou aqui.

- Está bem segura.
- Tenho tanto medo.

- Não me deixes, fica comigo.
- Sempre.

- Recebeste a minha mensagem?
- Recebi.

Vou-te fazer uma bebida.

Desde quando é que andas a deixar
recados debaixo das portas de homens?

Desde que não atendem o telefone.

Para quem não tem nada que fazer,
andas muito ocupado.

- Por onde tens andando?
- A vaguear.

- Onde?
- Por aí.

Porquê esta necessidade
desesperada de me ver?

Tudo o que o meu recado dizia era:
"Onde estás?"

Não vejo onde é que está o desespero.

Li nas entrelinhas.

Pensei que se te desse uma bebida
e te fizesse o jantar,

me levavas ao cinema.

Parece-me bem.

E qual será o tema
da conversa ao jantar?

- Isto e aquilo.
- O que ando a fazer?

Se quiseres. Claro que só falamos
do que quiseres falar.

Pois claro.

E que tens andado a fazer?

Tenho andado a vaguear.

E tu, que tens feito?
Obrigado, filha.

Tenho-me divertido imenso.

Voltei ao meu primeiro amor: A pintura.

Óptimo,
bem te disse que perdias o teu tempo

na secção de roupa interior.

Isso é o ganha-pão,
mas a pintura entusiasma-me muito.

O que é? Natureza morta?

Não propriamente.

- Queres ver?
- Quero.

Para dizer a verdade,
pensei em oferecer-to.

Não tem graça, Midge.

Johnnie, eu pensei...

Deixamos o cinema para outra noite.

Marjorie Wood, que parva!

Idiota!

Estúpida!

- Que se passa?
- Devia ter telefonado, mas...

- Queria estar contigo.
- Porquê, o que aconteceu?

Tive o sonho. O sonho voltou.

Vais ficar bem.

Vou-te arranjar um brande.

Bebe, como se fosse remédio.

Pronto.
Foi um sonho, estás acordada.

Já passou. Podes-mo contar?

Foi a torre,
o sino e a velha aldeia espanhola.

- Sim?
- Muito nítido, pela primeira vez. Tudo.

Conta-me.

Uma praceta de aldeia,
um relvado com árvores

e uma velha igreja espanhola caiada,
com claustro.

Em frente,
uma velha casa cinzenta grande

com alpendre, persianas e varanda.

Um jardim, e ao lado uma estrebaria
com carroças antigas dentro.

Continua.

Ao fim do parque, uma casa de pedra
com uma linda aroeira ao canto...

E um velho hotel de madeira
dos tempos da Califórnia?

E um bar? Escuro, com tectos baixos
e lamparinas pendentes?

- Sim.
- Está lá tudo.

Não é um sonho.

Já lá estiveste, já viste isso tudo.

- Não, nunca!
- 160 km a sul de São Francisco

há uma velha missão espanhola,
San Juan Bautista.

Preservaram-na como era há cem anos,
como um museu.

Agora pensa bem, querida.

Pensa bem. Já lá estiveste, já a viste.

Nunca lá estive.
O que é, Scottie? Nunca lá fui.

Continua com o sonho.
O que foi que te assustou?

Estava sozinha no relvado,
à procura duma coisa.

Comecei a andar em direcção à igreja,

depois as trevas envolveram-me
e fiquei sozinha no escuro.

A ser puxada para o escuro.

- Tenho de acordar.
- Vais ficar bem.

Deste-me elementos
com que posso trabalhar.

Vou-te levar à missão para te lembrares
de quando a viste antes.

Vai acabar com o teu sonho,
vai destruí-lo. Prometo-te.

Está bem?

Anda, vou levar-te a casa.

Vou ficar bem.

Voltas cá por volta do meio-dia.

Missão de San Juan Bautista - 5 km

Estrebaria

Onde estás agora?

- Aqui contigo.
- E é tudo verdadeiro!

Não só como era há cem anos,
há um ano ou há seis meses,

ou seja quando for
que cá estiveste e a viste.

Pensa na altura em que cá estiveste.

Então não havia tantas carroças.

Havia cavalos nas cocheiras,

um baio, dois pretos e um cinzento.

Era o nosso lugar favorito.

Mas não nos deixavam brincar aqui,

a irmã Teresa ralhava-nos.

Olha aqui.

Cá está o teu cavalo cinzento.

Teria dificuldade em entrar
e sair da cocheira sem ajuda, mas...

Vês, há respostas para tudo.

Tenta.

Tenta para mim.

- Amo-te, Madeleine.
- Eu também.

- Demasiado tarde...
- Não, estamos juntos.

É demasiado tarde.
Tenho de fazer uma coisa.

Não tens de fazer nada.

Ninguém te possuiu,
comigo estás segura.

Não, é demasiado tarde.

Não é justo,
não devia ter acontecido assim.

Tinha de acontecer,
estamos apaixonados.

- Larga-me!
- Ouve o que eu digo!

- Acreditas que te amo?
- Sim.

E se me perderes, saberias que te amei
e que queria continuar a amar-te.

Não te vou perder.

- Deixa-me entrar na igreja. Sozinha.
- Porquê?

Desconfiado de que a mulher não estava
de boa saúde mental, o Sr. Elster

tomou a precaução preliminar

de a fazer seguir pelo Sr. Ferguson,
para evitar que lhe acontecesse algo.

Como ouviram, o Sr. Elster dispunha-se
a internar a esposa numa clínica

onde a saúde mental da mesma
ficaria a cargo de peritos.

O Sr. Ferguson, sendo ex-detective,

pareceu ser a escolha indicada
para guardião e protector.

Como sabem, foi uma escolha infeliz.

Porém, terão de concordar
que a culpa não foi do marido.

A sua demora em internar a esposa
deveu-se à necessidade

de dados
sobre o comportamento da mesma,

que ele esperava obter do Sr. Ferguson.

Tomara todas as precauções
para proteger a mulher,

não podia saber
que as vertigens do Sr. Ferguson

impossibilitariam a sua intervenção.

Quanto ao Sr. Ferguson,

ouviram o seu antigo chefe,

o Detective Capitão Hansen,
daquela grande cidade a norte daqui,

depor com entusiasmo
sobre o seu bom carácter e competência.

O facto de que, uma vez
e em circunstâncias semelhantes,

o Sr. Ferguson deixou um colega
da polícia cair para a morte,

o Capitão Hansen rejeitou
como sendo um incidente lamentável.

É claro que o Sr. Ferguson
deve ser felicitado

por salvar a vida da mulher quando,

num acesso de deficiência prévio,
ela se atirou à baía.

É pena que, estando a par
das suas tendências suicidas,

ele não se ter esforçado mais
na segunda ocasião.

Não estamos aqui para julgar
a falta de iniciativa do Sr. Ferguson.

Ele nada fez. A lei não tem muito a dizer

quanto a coisas que ficaram por fazer.

Nem o seu estranho comportamento

depois de ver cair o corpo

tem alguma influencia sobre o veredicto.

Ele não ficou na cena do crime,
mas partiu.

Diz que teve amnésia,
e que não se lembra de nada

até dar por si no seu andar,
horas depois.

Podem ou não acreditar nisso.

Ou podem acreditar que, tendo mais
uma vez deixado morrer alguém,

ele não pode encarar o resultado trágico
da própria fraqueza,

e fugiu.

Isso nada tem a ver
com o vosso veredicto.

Esse assunto é entre ele
e a própria consciência.

Do estado mental de Madeleine Elster
antes da sua morte,

da forma como morreu,

e da autópsia demonstrativa
da causa de morte,

não deverão ter qualquer dificuldade
em obter um veredicto, meus senhores.

Podem-se retirar, se desejarem.

- Já temos o veredicto.
- Obrigado.

O júri decidiu que Madeleine Elster

se suicidou durante um período
de instabilidade mental.

O veredicto ficará assim registado.
Está encerrada a sessão.

- Vamos.
- Importa-se que fale com ele?

Não, esteja à vontade.

Desculpe, foi uma barbaridade.

Ele não tem o direito
de lhe falar daquela maneira.

A responsabilidade foi minha.
Não te devia ter implicado.

Não tens de me dizer nada.

Vou-me embora daqui para sempre,
não posso cá ficar.

Vou pôr termo aos negócios dela
e aos meus

e vou para o mais longe que puder.

Talvez para a Europa.
É provável que nunca volte.

Adeus, Scottie.

Se puder fazer alguma coisa por ti
antes de partires...

Não há maneira de eles compreenderem.

Tu e eu sabemos
quem matou a Madeleine.

Anda, vamos embora daqui.

É Mozart.

Wolfgang Amadeus.

Tive uma longa conversa
com aquela senhora da terapia musical.

Ela diz que o Mozart é que te vai salvar.

A vassoura que vai varrer
as teias de aranha.

Pelo menos foi o que a senhora disse.

É maravilhoso
como agora se pode gravar tudo.

Há música para dipsomaníacos,
música para melancólicos,

música para hipocondríacos.

Que será que acontecia
se alguém misturasse os ficheiros?

Trouxe-te muitas mais coisas,
podes escolher o que quiseres.

Desliga-se automaticamente.

Por favor, tenta. Tenta, Johnnie.

Não estás perdido.
Tens aqui a tua mamã.

São horas? Está bem.

Eu volto cá.

Queres que apague isto?

Nem sabes que eu estou aqui, pois não?

Mas estou.

Enfermeira, posso falar com o médico?

Doutor, a Menina Wood.

Queira entrar, por favor.

Diga, Menina Wood.

Doutor, quanto tempo vai levar
a fazê-lo sair daquele estado?

Não sei.
Pelo menos seis meses, talvez um ano.

- Depende muito dele.
- Ele não fala.

Não. Está a sofrer de melancolia aguda,

juntamente com um complexo de culpa.

Ele culpa-se da morte da mulher,

e do que se passou antes
sabemos muito pouco.

Uma coisa lhe poso dizer.
Ele estava apaixonado por ela.

Isso complica o problema,
não é verdade?

Ainda lhe posso complicar mais o caso.
Ele ainda está.

Sabe que mais, Doutor?
Não acho que o Mozart ajude nada.

Sentido Único

- Onde obteve este carro?
- Perdão?

Comprei-o ao senhor que aqui vivia
quando ele partiu. O Sr. Gavin Elster.

Conhecia-o? E à mulher?

Pobrezinha. Não a conhecia.
É verdade que ela...

Peço desculpa.

Boa noite.

Um whisky soda.

Sim? Que deseja?

Posso-lhe fazer umas perguntas?

- Quem é o senhor?
- Sou John Ferguson.

- Isto é um inquérito de marketing?
- Não, não.

- Só umas coisas...
- Vive aqui?

- Acontece que a vi quando entrou.
- Logo vi, um engate.

É preciso ter lata!
Vir atrás de mim até ao meu quarto...

- Ponha-se a andar!
- Por favor, só quero falar consigo.

- Oiça, daqui a pouco grito.
- Não lhe vou fazer mal.

Por favor, deixe-me falar consigo.

- Sobre o quê?
- Sobre si.

- Porquê?
- Lembra-me alguém.

Essa também já ouvi. Lembro-lhe uma
mulher por quem esteve apaixonado,

mas ela deixou-o por outro homem,

e nunca lhe passou o desgosto.

Quando me viu,
alguma coisa bateu certo.

- Não anda longe da verdade.
- Não vai funcionar, é melhor ir embora.

Por favor, deixe-me entrar.

Pode deixar a porta aberta.
Só quero falar consigo. Por favor.

Mas aviso-o
de que eu tenho bons pulmões.

Não vai precisar de gritar.

Não tem ar de estripador.
Que quer saber?

- O seu nome.
- Judy Barton.

- E quem é.
- Trabalho no Magnin's.

E porque vive aqui?

- É apenas onde vivo.
- Mas está cá há pouco tempo?

- Não, há uns três anos.
- E antes disso?

Salina, no Cansas.

O que é isto? O que me quer?

- Só quero saber quem é.
- Já lhe disse.

O meu nome é Judy Barton,
sou de Salina,

trabalho no Magnin's e vivo aqui.

Quer provas?

Tome lá, senhor:
A minha carta de condução do Cansas.

Judy Barton, número Z296794.
425 Maple Avenue, Salina, Cansas.

Está a ver aqui a morada? É esta aqui.

Uma carta de condução da Califórnia
emitida a 25 de Maio de 1954.

Quer ver as impressões digitais?
Está satisfeito?

Esteja ou não, pode-se pôr a mexer.

Bolas, está mesmo apanhado, não está?

Sou mesmo parecida com ela?

Faleceu, não foi?

Os meus pêsames.
Desculpe ter-lhe gritado.

Sou eu com a minha mãe.

É o meu pai.

Ele morreu, a minha mãe voltou a casar,

mas eu não gostei do tipo, por isso vim
ver como era a Califórnia ensolarada.

Há três anos que cá estou.

Juro.

Quer jantar comigo?

Porquê?

Agora sinto-me em dívida para consigo...

- Não me deve nada.
- Faça-o por mim.

- Jantar e que mais?
- Mais nada.

- Porque lha faço lembrar?
- Porque gostava de jantar consigo.

Já tive encontros com desconhecidos.

Aliás, até já fui engatada.

- Está bem.
- Volto com o carro daqui a meia hora.

Dê-me tempo de trocar de roupa.

Uma hora?

Querido Scottie...

encontraste-me.

É este o momento
que eu temia e desejava,

pensando no que diria e faria
se alguma vez te voltasse a ver.

Queria tanto ver-te
apenas uma vez mais,

agora vou partir,
e podes cessar a tua busca.

Quero que tenhas paz de espírito,
não te deves culpar por nada.

Eu fui o instrumento, e tu a vítima

do plano de Gavin Elster matar a mulher.

Escolheu-me para o papel
porque me parecia com ela.

Era seguro porque ela vivia no campo
e quase nunca vinha à cidade.

Escolheu-te
para testemunhares o suicídio.

A história da Carlotta
era meia verdade, meia mentira,

para que depusesses
que a Madeleine se queria matar.

Ele sabia da tua doença, sabia
que nunca chegarias ao cimo da torre.

Planeou tudo tão bem,
não cometeu erros.

O erro foi meu, apaixonei-me.

Não fazia parte do plano.

Continuo apaixonada por ti,
e quero tanto que me ames...

Se tivesse coragem, ficava e mentia,
esperando que me amasses outra vez,

sendo quem sou, por mim.

Esquecer a outra, esquecer o passado.

Mas não sei se tenho coragem
para tentar.

Desculpe, com licença.

- Pronto.
- Obrigada, mais uma vez.

- Boa noite.
- Podemos encontrar-nos amanhã?

- Amanhã à noite?
- Não, amanhã de manhã.

- Mas tenho de ir trabalhar, eu trabalho.
- Não vá trabalhar.

E vivo do quê,
dos meus poços de petróleo?

Deixe-me tomar conta de si, Judy.

Obrigada, mas não obrigada.

- Não está a compreender...
- Compreendo muito bem.

Desde os 17 anos que compreendo isso.

- E qual é o próximo passo?
- Não.

Não? Então o quê?

Podíamos apenas...

ver-nos muitas vezes.

Porquê?

Porque lha faço lembrar?

Não é propriamente um elogio.

E nada mais?

- Não.
- Também não é propriamente um elogio.

Só quero estar junto de si
o mais que puder, Judy.

Bem, suponho que...

posso telefonar para o armazém amanhã

e inventar uma desculpa qualquer.

Gosto desse.

- Esse? Está bem.
- É muito bonito.

É lindo.

Pronto.
Compramos isto e depois as tais roupas.

- A sério?
- A Ransohoffs é ali. Tudo do melhor.

- Quanto é?
- 50 cêntimos.

- Não tens de fazer isto.
- Mas eu quero.

- Não, não é nada disto.
- Mas o senhor disse cinzento.

Só quero um fato cinzento
simples e vulgar.

- Mas eu gosto deste, Scottie.
- Não, não serve.

O cavalheiro
parece saber bem o que quer.

Está bem, havemos de encontrá-lo.

- Que estás a fazer?
- Estou-te a tentar comprar um fato.

Mas eu adorei
o segundo que ela passou.

- E este, é lindo.
- Não, nenhum deles é o tal.

Sei qual é o fato, tivemo-lo há tempos.

Talvez ainda tenhamos esse modelo.

Obrigado.

Estás à procura do fato que ela usava.
Queres que me vista como ela.

Quero que te vistas bem,
eu sei o que te fica bem.

Recuso-me a fazê-lo!

Não pode fazer grande diferença.

Não quero roupa nenhuma.
Quero sair daqui.

- Faz isto por mim!
- Aqui temos.

- É esse.
- Bem me parecia.

- Não gosto dele.
- Vamos levá-lo. Vai-lhe servir?

Pode precisar dumas pequenas
alterações, mas é o tamanho da senhora.

Obrigada.
Pode já experimentá-lo.

- Quanto tempo demora a alterar?
- Bem...

- Hoje à noite pode ser?
- Se tiver de ser.

Tem sim.
Queremos ver um vestido de noite,

preto, curto, com manga comprida
e decote quadrado.

O senhor sabe mesmo o que quer!
Vou ver o que temos.

Sim, são esses. Tem em castanho?

- Temos sim.
- Óptimo.

Bebe, como se fosse remédio.

Porque estás a fazer isto?
Para que é que serve?

Não sei.

Não sei. Para nada, acho eu. Não sei.

Quem me dera que me deixasses em paz.
Quero-me ir embora.

E podes, sabes?

Não, não me deixavas ir.

E eu não quero ir-me embora.

Estes últimos dias foram os mais felizes
de há um ano para cá.

Eu sei. Eu sei, porque...

Porque ta faço lembrar.

E não é muito.

Judy, és tu também.

Há algo em ti que...

- Nem me queres tocar.
- Quero sim.

Não podias gostar de mim?

Apenas de mim, como sou?

Quando começámos a andar juntos
foi tão bom, divertimo-nos.

Mas depois começaste
com a história da roupa.

Eu visto o raio da roupa se quiseres,
se ao menos...

gostares de mim.

- A cor do teu cabelo.
- Oh, não!

Por favor, não te deve
fazer diferença nenhuma.

Se eu deixar
que me modifiques, resulta?

Eu faço o que tu queres.

- Vais amar-me?
- Vou

Então está bem, eu faço-o.
Já não quero saber de mim.

Vem-te sentar aqui ao pé da lareira.

Vai demorar várias horas.

A senhora disse
que se encontra consigo em casa.

Não, diga-lhe que vou
para o seu hotel esperar por ela.

Tem a certeza
quanto à cor do seu cabelo?

- Sim, é uma cor fácil.
- E o resto...

- Sabemos o que o senhor quer.
- Obrigado.

E então?

Devias estar com a testa a descoberto,
e tê-lo apanhado no pescoço.

Nós tentámos, mas não me fica bem.

Por favor, Judy.

- Onde vamos jantar?
- Onde quiseres.

- Ao Ernie's?
- Tens a mania do Ernie's.

Afinal, é o nosso lugar.

Olá, meu amor. Gostas de mim?

- Não consegues melhor que isso?
- Vem cá.

Não. Vais-me desarranjar.

Era o que eu tinha na ideia. Vem cá!

Demasiado tarde, já me pintei.

De repente tenho fome.

- Preferes ir a outro sítio?
- Não, vamos lá ao Ernie's.

Vou mandar vir...

um daqueles bifes grandes
maravilhosos.

Deixa cá ver. Para começar, acho que...

Ajuda-me aqui, ajudas?

Já está.

- Como é que isto funciona?
- Não vês?

- Já está.
- Obrigada.

Estou quase pronta.
Só me falta encontrar o batom.

Onde é que o pus?
Ainda agora aqui estava.

Será que está aqui?

Está aqui.

Pronto, estou pronta.

Mas antes, desarranjas-me um pouco?

Agora já te tenho, não já?

Queres ir jantar fora da cidade?

- Podíamos ir até o fim da península.
- Se quiseres.

Estamos muito longe.

Apetece-me conduzir.

- Tens muita fome?
- Não. Não faz mal.

Onde é que vais?

Só tenho de fazer uma última coisa.

E ficarei livre do passado.

- Porque estamos aqui?
- Já disse.

Tenho de voltar mais uma vez
ao passado. Só mais uma vez.

Pela última vez.

Porquê? Porquê aqui?

A Madeleine morreu aqui, Judy.

- Não quero ir, prefiro...
- Não, eu preciso de ti.

Porquê?

Preciso que sejas a Madeleine
por algum tempo.

E no final ambos estaremos livres.

- Tenho medo.
- Tenho de te falar da Madeleine agora.

Ali mesmo.

Demos ali o nosso último beijo.

Ela disse: "Se me perderes,

"sabes que te queria continuar a amar".

E eu disse: "Não te vou perder".

Mas perdi.

E depois deu meia volta

e correu para dentro da igreja.

E quando fui atrás dela,
já era demasiado tarde.

Não quero entrar aí!

Demasiado tarde.

Não a pude encontrar.

Depois ouvi passos nas escadas.

Estava a subir à torre a correr.

Ali mesmo.

Vê, estava a subir as escadas a correr.

Pelo alçapão ao cimo da torre.

Eu tentei segui-la,
mas não pude subir à torre.

Tentei,
mas não consegui chegar ao topo.

É raro ter-se uma segunda oportunidade.
Quero que o espectro se vá.

És a minha segunda oportunidade, Judy.

- És a minha segunda oportunidade!
- Leva-me daqui!

Agora pareces a Madeleine.

Sobe as escadas. Sobe as escadas!

Sobe as escadas, Judy.

E eu vou atrás.

Não pude ir mais longe,
mas tu continuaste.

Lembras-te?

O colar, Madeleine.

O erro foi o colar.
Eu lembro-me do colar.

- Deixa-me!
- Vamos subir a torre!

Não podes! Tens medo!

Veremos.
É a minha segunda oportunidade!

Naquele dia
sabias que não te podia seguir.

Quem estava lá? O Elster e a mulher?

- Sim!
- E foi ela que morreu.

A esposa, não tu!

Tu eras a cópia, a falsificação.

- Estava morta ou viva?
- Morta! Ele partiu-lhe o pescoço.

Não se arriscava
a que ela sobrevivesse!

Quando lá chegaste, ele atirou-a.
Mas foste tu quem gritou. Porquê?

Queria impedi-lo.
Fui lá acima para o impedir.

Porque gritaste?
Tinhas-me enganado tão bem até aí.

Fazias o papel de esposa muito bem.

Ele modificou-te, não foi?
Tal como eu fiz.

Só que melhor.
Não apenas a roupa e o cabelo,

mas o aspecto, os maneirismos, as
palavras, aqueles transes belos e falsos.

Mergulhaste na baía, não foi?
Aposto que és uma excelente nadadora.

- Não és?
- Sou!

E depois, que fez ele?
Ensinou-te? Fez-te ensaiar?

Disse-te o que havias de dizer e fazer?

E foste uma aluna exímia, não foste?

Mas porque me escolheram a mim?
Porquê eu?

O teu acidente!

O meu acidente. Eu era o álibi, não era?

Eu fui a testemunha feita
por encomenda. Fui...

Eu fi-lo acontecer.

Que vais fazer?

Vamos lá acima ver o local do crime.

Anda, Judy!

Foi aqui que aconteceu.

Esconderam-se ali, e depois desceram
sorrateiros e voltaram à cidade.

Não foi?

E depois foste a miúda dele, não?

Que te aconteceu?

Ele livrou-se de ti?

Com o dinheiro da mulher,
toda aquela liberdade e poder,

e ele livrou-se de ti. Que pena.

Sabia que estava seguro,
não podias abrir a boca.

- Deu-te alguma coisa?
- Dinheiro.

E o colar. O colar da Carlotta.

Esse foi o teu erro, Judy.

Não devais guardar recordações
dum assassinato.

Não devias ter sido tão sentimental.

Eu gostava tanto de ti, Madeleine.

Estava segura quando me encontraste,
não tinhas provas.

Quando te vi outra vez não pude fugir,
amava-te tanto.

Meti-me na boca do lobo e deixei
que me mudasses porque te amava.

Scottie, por favor.
Tu agora amas-me e vais-me proteger.

- Por favor!
- Demasiado tarde, ela não pode voltar.

Por favor!

Oh, não!

Ouvi vozes.

Que Nosso Senhor tenha piedade.

Ripped & Spell & Checked By
– MrBean © 2005 ® –