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1
00:01:18,959 --> 00:01:22,709
Nunca tinha reflectido sobre a liberdade
at� a perder.
2
00:01:29,250 --> 00:01:31,459
Como se pode reconhecer a liberdade?
3
00:01:32,083 --> 00:01:36,250
N�o se toca, n�o se v�,
n�o se respira.
4
00:01:46,250 --> 00:01:49,334
Nascemos livres
e pensamos que � para sempre.
5
00:02:06,709 --> 00:02:09,042
Baptizaram-me
com o nome de Michelangelo
6
00:02:09,125 --> 00:02:13,167
mas eu preferi usar o da terra
onde a minha fam�lia tem ra�zes...
7
00:02:13,918 --> 00:02:15,459
Caravaggio.
8
00:02:21,501 --> 00:02:24,459
Daquele s�tio, daquele mundo, parti,
9
00:02:24,959 --> 00:02:26,918
para seguir o meu sonho de liberdade.
10
00:02:33,626 --> 00:02:35,792
Mas n�o soube proteger esse sonho,
11
00:02:36,584 --> 00:02:38,876
de mim mesmo, dos meus excessos.
12
00:02:44,999 --> 00:02:47,375
Agora que me privaram da liberdade...
13
00:02:47,959 --> 00:02:49,999
� a �nica coisa que quero.
14
00:02:58,083 --> 00:03:00,918
Agora saberia senti-la, v�-la...
15
00:03:01,959 --> 00:03:03,667
am�-la.
16
00:03:08,083 --> 00:03:11,334
Agora saberia defender
a minha liberdade,
17
00:03:11,584 --> 00:03:13,667
mesmo a custo da minha pr�pria vida.
18
00:03:42,999 --> 00:03:46,999
A vida de Caravaggio esteve sempre
envolta num mist�rio.
19
00:03:48,709 --> 00:03:53,083
Em 2007, uma descoberta extraordin�ria
abala o mundo da Arte.
20
00:03:53,876 --> 00:03:55,792
No Arquivo Diocesano de Mil�o,
21
00:03:55,876 --> 00:03:59,334
foi encontrada a certid�o de baptismo
de Michelangelo Merisi.
22
00:04:00,334 --> 00:04:05,834
Foi baptizado a 30 de Setembro de 1571,
na igreja de Santo Stefano em Brolo,
23
00:04:05,918 --> 00:04:09,501
e n�o em Caravaggio,
como at� agora se cria.
24
00:04:10,042 --> 00:04:13,542
Nascera no dia anterior,
a 29 de Setembro,
25
00:04:13,626 --> 00:04:18,042
na festa de S�o Miguel, o Arcanjo,
da� o seu nome, Michelangelo.
26
00:04:33,667 --> 00:04:37,834
Aos seis anos, Caravaggio
vive o primeiro trauma da sua exist�ncia.
27
00:04:39,792 --> 00:04:44,709
Para fugir � peste, os Merisi abandonam
Mil�o e v�o para a terra dos antepassados,
28
00:04:45,375 --> 00:04:46,834
Caravaggio.
29
00:04:47,959 --> 00:04:51,042
Contudo,
a fuga n�o salva o pai, o av� e o tio.
30
00:04:51,667 --> 00:04:52,999
Morrem os tr�s.
31
00:04:57,292 --> 00:04:59,999
Terminada a epidemia em 1584,
32
00:05:00,083 --> 00:05:04,667
Caravaggio regressa a Mil�o para estudar
pintura no atelier de Simone Peterzano,
33
00:05:04,751 --> 00:05:08,542
um ilustre Mestre que fora aluno
de Ticiano em Veneza.
34
00:05:11,834 --> 00:05:13,999
Caravaggio tinha apenas 13 anos.
35
00:05:14,083 --> 00:05:17,584
E com Peterzano aprende o estilo t�pico
dos pintores lombardos,
36
00:05:17,667 --> 00:05:19,834
inspirados na Escola Veneziana,
37
00:05:19,918 --> 00:05:24,918
particularmente interessado na luz
e na representa��o da realidade.
38
00:05:33,417 --> 00:05:35,999
Estuda v�rios anos,
sob a indica��o do Mestre,
39
00:05:36,042 --> 00:05:39,375
mas nada resta das obras
que realizou nesse per�odo.
40
00:05:43,709 --> 00:05:47,918
Contudo, pesquisas recent�ssimas
revelaram algo de extraordin�rio.
41
00:05:48,542 --> 00:05:53,667
Um manuscrito in�dito de Gaspare Celio,
agora encontrado e datado de 1614,
42
00:05:54,459 --> 00:05:58,459
conta que o pintor fugiu de Mil�o
depois de ter morto um homem.
43
00:06:17,999 --> 00:06:21,999
Costumam dizer-me que n�o h� necessidade
de reproduzir a realidade tal como ela �.
44
00:06:23,042 --> 00:06:25,083
Talvez precisamente o contr�rio.
45
00:06:26,792 --> 00:06:29,834
Eu sou capaz disso,
alimento-me de realidade,
46
00:06:29,918 --> 00:06:32,751
n�o conhe�o mais nada,
nem dentro nem fora da realidade.
47
00:06:33,292 --> 00:06:36,626
Dos olhos � mente,
da mente � m�o,
48
00:06:37,250 --> 00:06:38,999
da m�o ao cora��o.
49
00:06:40,667 --> 00:06:44,459
A realidade, tal como a pintura,
vive ami�de de enganos,
50
00:06:44,918 --> 00:06:46,999
ou talvez de ilus�es.
51
00:06:55,125 --> 00:06:58,375
Mil�o, antes do crime de sangue
em que se viu envolvido,
52
00:06:58,459 --> 00:07:01,292
serve de escola de forma��o
do pintor Caravaggio.
53
00:07:02,375 --> 00:07:04,334
No refeit�rio
de Santa Maria delle Grazie,
54
00:07:04,417 --> 00:07:07,375
Caravaggio ter� estudado a "�ltima Ceia"
de Leonardo da Vinci.
55
00:07:11,501 --> 00:07:13,292
� prov�vel que Peterzano
56
00:07:13,375 --> 00:07:17,167
tenha sugerido aos alunos
que se inspirassem naquela obra-prima.
57
00:07:17,250 --> 00:07:20,751
E Caravaggio, quando anos depois,
pintou "Cesto de Frutas",
58
00:07:20,834 --> 00:07:22,751
hoje na Biblioteca Ambrosiana,
em Mil�o,
59
00:07:22,834 --> 00:07:26,417
inspirou-se na natureza-morta
presente na mesa da "�ltima Ceia",
60
00:07:27,542 --> 00:07:30,334
hoje, infelizmente,
praticamente esbatida.
61
00:07:33,167 --> 00:07:37,417
O "Cesto de Frutas", pintado
para o Cardeal Federico Borromeo,
62
00:07:37,501 --> 00:07:40,125
� um exemplo
da sua primeira forma de pintar.
63
00:07:43,542 --> 00:07:45,751
N�o h� nada de mais sereno:
64
00:07:46,125 --> 00:07:49,209
um cesto de vime,
com fruta, folhas de videira...
65
00:07:49,626 --> 00:07:52,999
Um fundo completamente neutro.
Quase um n�o-lugar.
66
00:07:53,501 --> 00:07:56,999
J� se nota aquela que ser� uma
caracter�stica fundamental do seu trabalho:
67
00:07:57,542 --> 00:07:59,876
a elimina��o do ambiente.
68
00:08:02,083 --> 00:08:05,667
Caravaggio neutraliza o espa�o
em torno daquilo que representa,
69
00:08:06,167 --> 00:08:09,167
como se as imagens se inscrevessem
num lugar metaf�sico.
70
00:08:09,792 --> 00:08:12,209
� criado um contraste na percep��o:
71
00:08:12,292 --> 00:08:15,667
o "nada" e a presen�a dram�tica
daquilo que se pretende representar.
72
00:08:15,959 --> 00:08:18,792
Quase conseguimos imaginar-nos
a tocar nestas ma��s,
73
00:08:18,876 --> 00:08:22,209
estes galhos de uvas,
estes figos... estas folhas.
74
00:08:22,959 --> 00:08:27,501
O cesto ligeiramente inclinado para a
frente parece mover-se na nossa direc��o,
75
00:08:27,584 --> 00:08:30,042
levando-nos a aproximarmo-nos da obra.
76
00:08:30,918 --> 00:08:32,918
A arte � um chamamento.
77
00:08:33,375 --> 00:08:34,375
Um im�.
78
00:08:46,918 --> 00:08:51,167
A chegada a Roma, aos 25 anos,
� para Caravaggio um ponto de inflex�o.
79
00:08:52,125 --> 00:08:56,542
Os seus primeiros tempos, jovem e
sem dinheiro, n�o devem ter sido f�ceis.
80
00:09:00,083 --> 00:09:01,709
"Indigente e esfarrapado",
81
00:09:01,792 --> 00:09:05,959
como o descreve um dos seus antigos
bi�grafos, Giovanni Pietro Bellori,
82
00:09:05,999 --> 00:09:09,209
encontra hospitalidade
junto de Monsenhor Pandolfo Pucci,
83
00:09:09,292 --> 00:09:10,999
um padre da Bas�lica de S�o Pedro,
84
00:09:11,042 --> 00:09:14,501
na esperan�a de entrar em contacto
com a Corte Pontif�cia.
85
00:09:16,125 --> 00:09:19,292
O "Monsenhor Salada",
conforme lhe chamava Caravaggio,
86
00:09:19,375 --> 00:09:22,250
gra�as � dieta escassa e mon�tona
que lhe proporcionava.
87
00:09:23,417 --> 00:09:27,751
Este trata o artista com condescend�ncia
encarregando-o de copiar quadros devotos
88
00:09:27,834 --> 00:09:29,876
e outros de somenos import�ncia.
89
00:09:29,959 --> 00:09:33,125
Caravaggio n�o suporta isso e parte.
90
00:09:38,876 --> 00:09:42,250
Vivendo agora na mis�ria,
sofre uma grave doen�a,
91
00:09:42,334 --> 00:09:45,542
e d� entrada
no Hospital della Consolazione.
92
00:09:47,375 --> 00:09:51,792
Quem sabe se ser� o dele o rosto de
"Baco Doente", hoje na Galeria Borghese?
93
00:10:08,876 --> 00:10:11,083
No seu lan�amento no panorama romano,
94
00:10:11,167 --> 00:10:14,459
Caravaggio escolhe
o antigo deus do vinho e dos bacanais.
95
00:10:17,918 --> 00:10:19,584
Um tema ambivalente.
96
00:10:20,626 --> 00:10:24,584
Um tema que pode interpretar-se
quer em senso pag�o, o Deus Baco,
97
00:10:26,626 --> 00:10:30,667
como em senso crist�o,
como prefigura��o de Jesus Cristo.
98
00:10:38,334 --> 00:10:43,042
As uvas que tem na m�o lembram o vinho
bebido por Jesus em "A �ltima Ceia",
99
00:10:44,334 --> 00:10:47,751
enquanto que a hera alude talvez
� cruz e � Paix�o.
100
00:10:49,792 --> 00:10:52,959
A obra � ao mesmo tempo
�ntima e desconcertante.
101
00:10:53,417 --> 00:10:56,292
Dir-se-ia que pod�amos
estender a m�o e tocar-lhe,
102
00:10:56,375 --> 00:10:59,709
mas o seu olhar frio e evasivo
mant�m-nos � dist�ncia.
103
00:11:01,626 --> 00:11:05,501
Hoje temos uma ideia de Caravaggio
como o t�pico g�nio solit�rio,
104
00:11:06,083 --> 00:11:07,459
sempre sozinho,
105
00:11:07,834 --> 00:11:12,709
sempre focado no seu trabalho,
muito distante das coisas normais da vida.
106
00:11:12,792 --> 00:11:13,999
Mas n�o era assim.
107
00:11:14,083 --> 00:11:18,250
Caravaggio estava muito envolvido
na sociedade e na vida da sua �poca,
108
00:11:18,334 --> 00:11:20,751
e tinha rela��es estreit�ssimas
com os colegas.
109
00:11:20,834 --> 00:11:22,375
Depois, quando veio para Roma,
110
00:11:22,459 --> 00:11:26,417
tentou naturalmente inserir-se
na grande vida art�stica da cidade.
111
00:11:26,501 --> 00:11:29,999
Uma cidade que, naquela altura,
era a capital das artes.
112
00:11:30,083 --> 00:11:33,792
E Caravaggio vai trabalhar
no atelier mais importante da �poca,
113
00:11:33,876 --> 00:11:36,959
o atelier de Giuseppe Cesari,
o Cavali�r d'Arpino.
114
00:11:38,250 --> 00:11:44,459
E o Cavali�r d'Arpino p�e Caravaggio
a pintar flores e frutos,
115
00:11:44,542 --> 00:11:48,417
o que n�o agradou a Caravaggio,
h� testemunhos ineg�veis disso.
116
00:11:57,542 --> 00:12:00,542
N�o h� vontade que chegue,
quando n�o se tem sorte.
117
00:12:04,959 --> 00:12:07,584
Sem sorte,
n�o � poss�vel ter qualquer sucesso.
118
00:12:12,334 --> 00:12:13,876
A sorte...
119
00:12:15,167 --> 00:12:19,042
veloz como os rel�mpagos
que rasgam subitamente o negro c�u.
120
00:12:22,709 --> 00:12:25,042
Imprevis�vel, indom�vel,
121
00:12:25,125 --> 00:12:26,667
impar�vel.
122
00:12:32,876 --> 00:12:36,250
Quantas vezes a desafiei,
e quantas vezes me derrotou...
123
00:12:44,999 --> 00:12:48,125
Mas eu n�o me rendo,
aposto ainda mais.
124
00:12:54,167 --> 00:12:58,375
N�o receio continuar a atirar os dados
e aumentar a parada...
125
00:13:01,834 --> 00:13:05,125
Fa�o-o na minha vida
e fa�o-o na pintura.
126
00:13:10,250 --> 00:13:12,417
A minha arte assombrar-vos-�.
127
00:13:13,751 --> 00:13:15,375
Vai modificar-vos.
128
00:13:25,667 --> 00:13:27,542
Numa cidade em pleno desenvolvimento,
129
00:13:27,626 --> 00:13:31,876
que no jubileu de 1600,
v� chegar tr�s milh�es de peregrinos,
130
00:13:31,959 --> 00:13:35,375
a vida de Caravaggio divide-se
entre a pintura e o divertimento.
131
00:13:37,876 --> 00:13:39,999
"Quando trabalha um par de semanas,"
132
00:13:40,083 --> 00:13:43,042
"depois mandria durante um m�s ou dois
de espada � cintura,"
133
00:13:43,125 --> 00:13:45,042
"acompanhado por um criado."
134
00:13:46,125 --> 00:13:48,209
"E anda de jogo em jogo,"
135
00:13:48,292 --> 00:13:50,492
"sempre pronto a bater-se em duelo
e a andar � pancada."
136
00:13:52,083 --> 00:13:54,167
Assim relata Karel van Mander,
137
00:13:54,250 --> 00:13:56,626
historiador e cr�tico de arte
flamengo do s�culo XVII,
138
00:13:56,709 --> 00:13:59,375
que descreve uma Roma
dissoluta e perigosa.
139
00:14:01,417 --> 00:14:04,542
"Convidar-vos-ia a ir l�,
se n�o receasse que se perdessem,"
140
00:14:04,626 --> 00:14:08,250
"porque Roma
� a capital das escolas de pintura,"
141
00:14:08,334 --> 00:14:13,542
"mas � tamb�m o lugar em que esbanjadores
e filhos pr�digos gastam tudo o que t�m."
142
00:14:21,876 --> 00:14:25,542
Caravaggio orientava-se muito bem
neste mundo povoado de bares,
143
00:14:25,626 --> 00:14:28,584
prostitutas e gente mal-afamada.
144
00:14:34,375 --> 00:14:38,167
H� v�rios documentos que confirmam
uma certa propens�o para a irrequietude.
145
00:14:38,834 --> 00:14:41,999
Basta recordar algumas
das muitas quest�es judiciais.
146
00:14:42,083 --> 00:14:45,918
Uma queixa contra ele, datada de 19
de Novembro de 1600 por agress�o.
147
00:14:46,459 --> 00:14:50,626
Uma cita��o em tribunal por parte do
seu futuro bi�grafo, Giovanni Baglione,
148
00:14:50,709 --> 00:14:52,834
de 28 de Agosto de 1603.
149
00:14:53,167 --> 00:14:57,250
E em 1604, a acusa��o
por parte dum rapaz duma estalagem
150
00:14:57,667 --> 00:15:01,999
que alegou ter levado na cara com um
prato de alcachofras, atirado pelo pintor.
151
00:15:16,083 --> 00:15:20,292
Caravaggio era bem conhecido nas
estalagens e tabernas de Campo Marzio.
152
00:15:20,918 --> 00:15:24,999
E a espada, sempre � cintura,
parecia ser um fiel companheiro.
153
00:15:27,792 --> 00:15:30,999
E este aspecto de Roma,
de que o pintor tanto gostava,
154
00:15:31,083 --> 00:15:34,999
surge em dois dos seus trabalhos,
evocando o seu fasc�nio por este submundo.
155
00:15:38,959 --> 00:15:43,501
Em "Os Trapaceiros", o rosto dos dois
jovens � mesa s�o extraordin�rios.
156
00:15:43,959 --> 00:15:48,292
Parecem ser a mesma pessoa, mas
t�m caracter�sticas e atitudes opostas.
157
00:15:48,792 --> 00:15:52,417
Um � ing�nuo e tranquilo,
o outro � manhoso e tenso.
158
00:15:57,417 --> 00:16:00,209
O tema da trapa�a
� tratado de modo divertido,
159
00:16:00,292 --> 00:16:01,876
assim descrito por Bellori:
160
00:16:02,501 --> 00:16:05,709
"V�-se um jovem simples,
de cartas na m�o,"
161
00:16:05,792 --> 00:16:09,584
"e frente a ele, de perfil,
v�-se um jovem aldrab�o,"
162
00:16:09,667 --> 00:16:11,999
"este, inclinado,
e de m�o apoiada na mesa do jogo,"
163
00:16:12,083 --> 00:16:15,542
"retira com a outra m�o,
uma carta falsa que tem no cinto."
164
00:16:15,626 --> 00:16:20,083
"Uma terceira figura, junto
ao jovem ing�nuo, v�-lhe as cartas,"
165
00:16:20,167 --> 00:16:23,667
"e indica-as ao seu c�mplice,
estendo tr�s dedos da m�o."
166
00:16:29,834 --> 00:16:33,250
"A Adivinha" versa tamb�m
sobre o tema da aldrabice.
167
00:16:33,709 --> 00:16:38,459
Aqui, uma cigana olha intensamente
e descarado um desventurado jovem
168
00:16:38,918 --> 00:16:40,918
e enquanto lhe l� a m�o,
169
00:16:41,375 --> 00:16:43,751
furta-lhe impunemente um anel.
170
00:16:46,083 --> 00:16:48,292
Trata-se dum quadro
de constru��o teatral,
171
00:16:48,375 --> 00:16:51,792
em que a verdade,
ou melhor, a artimanha da cigana,
172
00:16:51,876 --> 00:16:53,876
s� se nota com um olhar atento.
173
00:16:59,459 --> 00:17:02,999
Estes dois quadros impressionaram muito
o Cardeal Del Monte,
174
00:17:03,042 --> 00:17:06,417
um coleccionador apurado
e grande apoiante das artes.
175
00:17:08,417 --> 00:17:13,417
O Cardeal fica de tal modo entusiasmado
com Caravaggio, que o leva para casa,
176
00:17:13,834 --> 00:17:17,959
e o p�e a trabalhar em sua casa,
onde havia o atelier de outro artista.
177
00:17:18,334 --> 00:17:21,999
O Cardeal tinha uma esp�cie
de Cen�culo em sua casa,
178
00:17:22,083 --> 00:17:25,959
recebendo m�sicos, actores,
pintores, escultores...
179
00:17:25,999 --> 00:17:28,292
E documentos da �poca
indicam que Caravaggio
180
00:17:28,375 --> 00:17:31,751
organizou uma esp�cie de comiss�o,
181
00:17:31,834 --> 00:17:35,417
um pouco como se passava
nos anos 60 em Nova Iorque,
182
00:17:35,501 --> 00:17:38,417
com Andy Warhol e a Factory...
183
00:17:38,501 --> 00:17:43,959
Era uma reuni�o de muitos artistas
de v�rias tend�ncias e capacidades.
184
00:17:43,999 --> 00:17:46,417
Viviam e trabalhavam juntos,
185
00:17:46,501 --> 00:17:50,042
e cada um fazia o melhor que sabia,
dentro do seu talento.
186
00:17:51,834 --> 00:17:53,834
Gra�as � protec��o do Cardeal,
187
00:17:53,918 --> 00:17:56,417
a inquietude de Caravaggio
parece aplacar-se.
188
00:17:57,375 --> 00:18:01,125
Mas pouco depois, novos eventos
vir�o abalar a sua exist�ncia.
189
00:18:20,542 --> 00:18:22,250
Cometi tantos erros.
190
00:18:22,918 --> 00:18:25,125
E cometerei muitos mais.
191
00:18:28,667 --> 00:18:31,459
Mas a cada vez
compreendo que a mudan�a � vida.
192
00:18:42,334 --> 00:18:46,042
A pintura ajuda-me a conhecer-me melhor,
obra ap�s obra.
193
00:18:57,918 --> 00:19:01,292
Nos meus quadros me revejo,
a mim e aos meus fracassos.
194
00:19:05,042 --> 00:19:07,209
Mas aqui,
ao menos vejo-o claramente,
195
00:19:09,876 --> 00:19:11,918
quase como que num espelho.
196
00:19:20,959 --> 00:19:24,542
Como aqueles jarros com �gua cristalina
que reflectem o que os rodeia.
197
00:19:37,542 --> 00:19:39,459
� uma esp�cie de magia...
198
00:19:40,999 --> 00:19:43,542
porque eu estou sempre l� dentro.
199
00:20:03,209 --> 00:20:05,999
Caravaggio considerava
como seu talento supremo
200
00:20:06,042 --> 00:20:09,959
a capacidade para reproduzir
transpar�ncias e reflexos na �gua.
201
00:20:10,250 --> 00:20:14,250
Como testemunha um dos seus primeiros
bi�grafos, Giovanni Baglione,
202
00:20:14,584 --> 00:20:16,999
ao descrever "O Tocador de Ala�de",
203
00:20:17,083 --> 00:20:21,250
nas palavras do pr�prio Caravaggio:
"A mais bela obra que j� fiz".
204
00:20:27,792 --> 00:20:32,501
Um rapaz "ef�bico" dedilha um ala�de,
olhando directamente para n�s,
205
00:20:32,584 --> 00:20:35,083
com uma express�o t�o emotiva,
206
00:20:35,167 --> 00:20:37,792
que os olhos parecem estar
marejados de l�grimas.
207
00:20:44,751 --> 00:20:47,542
Caravaggio sabe reunir
realidade e beleza,
208
00:20:48,792 --> 00:20:52,459
consegue atordoar o observador,
transportando-o para a pr�pria cena,
209
00:20:55,876 --> 00:20:57,999
e a sua execu��o da transpar�ncia
210
00:20:58,250 --> 00:21:00,209
funciona como uma esp�cie de im�.
211
00:21:03,417 --> 00:21:07,209
Raramente se vira tal n�vel
de sofistica��o art�stica.
212
00:21:14,542 --> 00:21:18,125
Esta � a sedu��o da arte,
segundo Caravaggio.
213
00:21:30,083 --> 00:21:33,417
N�o h� obra dele mais oscilante
entre o sacro e o profano,
214
00:21:33,501 --> 00:21:36,417
do que o seu "Baco",
hoje na Galeria dos Of�cios,
215
00:21:36,959 --> 00:21:39,999
um quadro pintado
para o Cardeal del Monte.
216
00:21:41,417 --> 00:21:46,375
Baco olha directamente para o observador
com uma express�o docemente ir�nica,
217
00:21:46,876 --> 00:21:49,083
oferecendo-lhe um belo copo
de vinho tinto.
218
00:21:55,334 --> 00:21:59,209
A seu lado, uma natureza-morta
e um jarro de vinho quase negro,
219
00:21:59,292 --> 00:22:01,334
com umas bolhinhas � superf�cie:
220
00:22:01,792 --> 00:22:06,501
um toque de realismo que faz parecer ainda
mais real o momento capturado no quadro.
221
00:22:07,999 --> 00:22:13,125
Um pintor cl�ssico
nunca teria pintado Baco assim,
222
00:22:13,209 --> 00:22:17,125
sentando num colch�o de palha,
coberto com um len�ol branco.
223
00:22:17,834 --> 00:22:21,501
� como se o pintor se tivesse esquecido
de compor os tecidos.
224
00:22:32,542 --> 00:22:36,667
Baglione revela um pormenor fascinante
sobre a t�cnica de Caravaggio:
225
00:22:37,999 --> 00:22:42,792
os seus primeiros quadros foram pintados
a partir de "reflexos seus num espelho".
226
00:22:43,250 --> 00:22:46,501
Para Caravaggio, a realidade
precisa de uma etapa intermedi�ria.
227
00:22:46,918 --> 00:22:51,292
Num espelho focaliza-se apenas
aquilo que se quer representar
228
00:22:51,375 --> 00:22:52,876
Mais nada existe.
229
00:22:58,375 --> 00:23:00,959
O deus serve o vinho
com a m�o esquerda.
230
00:23:01,417 --> 00:23:06,834
Esta pista valida a teoria de que se trata
da sua m�o direita reflectida no espelho.
231
00:23:11,542 --> 00:23:16,542
� ainda mais surpreendente saber
que Caravaggio n�o s� usou o espelho,
232
00:23:16,626 --> 00:23:20,999
como transformou o seu atelier
numa enorme c�mara obscura.
233
00:23:21,209 --> 00:23:23,125
Nela compunha os seus modelos,
234
00:23:23,209 --> 00:23:26,876
que iluminava com um feixe filtrado
a partir dum buraco no tecto.
235
00:23:26,959 --> 00:23:32,417
Depois projectava a sua imagem numa
tela usando uma lente e um espelho.
236
00:23:46,125 --> 00:23:50,250
"Um Anjo do Senhor apareceu
a Jos� num sonho e disse:"
237
00:23:50,542 --> 00:23:55,375
"Levanta-te, pega na crian�a
e na m�e e foge para o Egipto."
238
00:23:55,501 --> 00:23:57,626
"Fica l� at� que eu te alerte,"
239
00:23:57,709 --> 00:24:00,999
"pois Herodes procura
a crian�a para a matar."
240
00:24:02,125 --> 00:24:04,501
Assim se l� no Evangelho de Mateus,
241
00:24:04,584 --> 00:24:07,375
que inspirou "Descanso
na Fuga para o Egipto",
242
00:24:07,459 --> 00:24:09,709
hoje na Galeria Doria Pamphilji.
243
00:24:13,709 --> 00:24:17,709
� um dos trabalhos
mais fascinantes de Caravaggio,
244
00:24:17,792 --> 00:24:20,501
devido � presen�a do bel�ssimo anjo,
245
00:24:20,584 --> 00:24:23,417
por quem Caravaggio
parece ter-se apaixonado.
246
00:24:28,542 --> 00:24:30,999
Trata-se de uma figura central,
247
00:24:31,083 --> 00:24:35,751
que representa um conceito importante
em termos de realismo,
248
00:24:35,834 --> 00:24:41,417
mas tamb�m no que toca a composi��o,
porque ele pr�prio � o eixo do quadro.
249
00:24:54,209 --> 00:24:56,959
A fama de Caravaggio
come�a a espalhar-se.
250
00:24:57,459 --> 00:25:02,250
Um dos maiores coleccionadores da �poca,
o Marqu�s Vincenzo Giustiniani,
251
00:25:02,334 --> 00:25:04,375
encomenda-lhe "Amor Vincit Omnia",
252
00:25:07,292 --> 00:25:10,999
"O amor tudo conquista,
entreguemo-nos n�s tamb�m ao amor!"
253
00:25:11,959 --> 00:25:15,167
como afirma Virg�lio,
nas suas "Buc�licas".
254
00:25:17,125 --> 00:25:18,667
� um tema estranho:
255
00:25:19,417 --> 00:25:23,417
um rapaz alado semelhante a um cupido
invade a cena.
256
00:25:25,876 --> 00:25:28,042
A seus p�s, uma s�rie de objectos,
257
00:25:28,125 --> 00:25:31,209
instrumentos musicais, armas,
s�mbolos de poder...
258
00:25:36,083 --> 00:25:41,334
Esta representa��o audaz leva o Marqu�s
a manter o quadro atr�s de uma cortina,
259
00:25:42,042 --> 00:25:45,667
em parte para n�o diminuir
as outras obras da sua colec��o.
260
00:26:10,042 --> 00:26:13,459
Os meus cr�ticos afirmam
que eu n�o sei reproduzir a ac��o.
261
00:26:14,999 --> 00:26:19,125
"Est� para l� da capacidade dele",
caluniavam-me os invejosos.
262
00:26:21,709 --> 00:26:23,626
Eu at� fui mais longe.
263
00:26:28,834 --> 00:26:32,959
Soube traduzir a ac��o
na simples express�o de um rosto.
264
00:26:38,792 --> 00:26:40,292
A reac��o reflexa.
265
00:26:42,375 --> 00:26:46,083
Capaz, por si s�, de reproduzir tudo,
mesmo aquilo que n�o se v�.
266
00:26:48,751 --> 00:26:52,334
A minha Medusa conta mais
do que quaisquer dez livros.
267
00:26:53,584 --> 00:26:57,876
Mas a verdade � que eu tamb�m senti
tantas vezes a dor que a percorre...
268
00:26:57,959 --> 00:26:59,959
Podia ler-se na minha cara.
269
00:27:02,626 --> 00:27:04,417
Somos semelhantes, eu e a Medusa.
270
00:27:04,501 --> 00:27:07,542
Ela consegue transformar
seres vivos em pedra.
271
00:27:08,042 --> 00:27:11,918
Eu consigo fix�-los para a eternidade
atrav�s da pintura.
272
00:27:25,501 --> 00:27:29,709
A fama de Caravaggio cresce a par e passo
com a cr�tica que ele suscita.
273
00:27:29,792 --> 00:27:32,876
Cada sucesso desencadeia
correspondentes objec��es,
274
00:27:32,959 --> 00:27:35,876
principalmente relativos � "ac��o".
275
00:27:36,959 --> 00:27:39,250
A for�a das suas figuras
era incontorn�vel,
276
00:27:39,334 --> 00:27:43,999
mas as mesmas eram criticadas pela falta
de "movimento, afectos e eleg�ncia."
277
00:27:49,918 --> 00:27:52,918
Tais acusa��es foram silenciadas
com o escudo com "A Cabe�a de Medusa",
278
00:27:52,999 --> 00:27:55,501
hoje em exibi��o
na Galeria dos Of�cios.
279
00:27:56,209 --> 00:27:59,834
Mais uma vez,
o seu trabalho assenta na natureza:
280
00:27:59,918 --> 00:28:05,250
as serpentes contorcidas na cabe�a
de Medusa parecem mesmo estar vivas!
281
00:28:07,834 --> 00:28:10,125
O rosto est� engasgado
num grito silencioso,
282
00:28:10,209 --> 00:28:13,250
no momento imediatamente
ap�s a decapita��o,
283
00:28:13,334 --> 00:28:16,999
captado no �ltimo acto
de impar�vel vitalidade.
284
00:28:17,459 --> 00:28:22,209
A boca aberta deixa ver a l�ngua h�mida,
os olhos est�o arregalados,
285
00:28:22,292 --> 00:28:27,125
os seus m�sculos est�o anormalmente
contra�dos; as sobrancelhas, unidas,
286
00:28:27,209 --> 00:28:30,209
o emaranhado de cobras contorce-se
como se tivesse enlouquecido,
287
00:28:30,292 --> 00:28:33,999
enquanto esguichos de sangue
lhe escorrem do pesco�o.
288
00:28:36,876 --> 00:28:39,334
� uma express�o de dor aut�ntica,
289
00:28:39,417 --> 00:28:43,292
semelhante � do "Rapaz Mordido
por um Lagarto", na National Gallery,
290
00:28:44,083 --> 00:28:47,999
da qual h� mais uma excelente vers�o
na Fondazione Longhi.
291
00:28:50,083 --> 00:28:52,667
O quadro mostra a ac��o reflexa
292
00:28:52,751 --> 00:28:57,918
que se concentra na retrac��o da m�o
293
00:28:57,999 --> 00:29:01,999
no confronto com o animal
que est� em primeiro plano.
294
00:29:03,167 --> 00:29:05,709
Concentra-se na extraordin�ria reac��o
295
00:29:05,792 --> 00:29:08,584
da express�o da sua cara,
296
00:29:08,667 --> 00:29:12,042
a boca meio fechada
e o sobrolho franzido.
297
00:29:13,584 --> 00:29:18,459
Um pormenor extraordin�rio
que revela o interesse de Caravaggio
298
00:29:18,542 --> 00:29:22,083
em representar os momentos
com express�es fugidias.
299
00:29:27,667 --> 00:29:33,083
O rapaz tem um ar de abandono que leva
a interpretar o quadro como uma vanitas,
300
00:29:33,999 --> 00:29:38,542
um reflexo dos po�os em que caem
aqueles que se abandonam...
301
00:29:38,834 --> 00:29:40,542
aos prazeres do mundo.
302
00:29:45,626 --> 00:29:50,459
Esta aten��o � express�o facial � ainda
mais forte em "O Sacrif�cio de Isaac".
303
00:29:56,042 --> 00:30:00,751
A natureza dram�tica do evento pode
ler-se no desespero da v�tima, Isaac,
304
00:30:01,209 --> 00:30:06,083
cujo pai, Abra�o, se disp�e a sacrificar,
para obedecer � vontade de Deus.
305
00:30:08,125 --> 00:30:12,292
Este quadro particular atesta a
passagem entre uma fase juvenil
306
00:30:12,375 --> 00:30:14,167
e uma fase mais madura,
307
00:30:14,250 --> 00:30:18,501
e caracteriza-se tamb�m
por algo de verdadeiramente singular,
308
00:30:18,584 --> 00:30:21,250
ou seja, um fundo com paisagem.
309
00:30:23,292 --> 00:30:28,125
A paisagem n�o � o aspecto mais
corrente nos trabalhos de Caravaggio.
310
00:30:29,709 --> 00:30:33,834
O quadro est� muito equilibrado,
do ponto de vista da composi��o,
311
00:30:33,918 --> 00:30:35,667
n�o deixando de ser realista,
312
00:30:35,751 --> 00:30:38,167
e � esta a capacidade de Caravaggio,
313
00:30:38,250 --> 00:30:41,584
a de se alinhar
com um sentido da realidade,
314
00:30:41,667 --> 00:30:47,292
em vez de o conceito da cultura
que um quadro deve expressar.
315
00:30:52,876 --> 00:30:56,999
A vida de Caravaggio continua a decorrer
entre tortuosidade e sucessos,
316
00:30:57,542 --> 00:30:59,459
entre trevas e luz,
317
00:30:59,542 --> 00:31:02,125
entre pintura e tormentos.
318
00:31:03,417 --> 00:31:07,999
Caravaggio tem 28 anos e a sua grande
oportunidade est� ao virar da esquina.
319
00:31:30,375 --> 00:31:32,751
Tenho o nome dum arcanjo,
320
00:31:32,834 --> 00:31:35,584
mas tamb�m o de um grande artista.
321
00:31:42,417 --> 00:31:45,918
Sinto em mim os contrastes
de uma natureza imperfeita
322
00:31:46,626 --> 00:31:48,334
que n�o consigo controlar.
323
00:31:54,125 --> 00:31:58,125
Quero libertar-me, mas � imposs�vel
domesticar o �nimo rebelde
324
00:31:58,209 --> 00:32:00,501
e vencer o meu instinto selvagem.
325
00:32:12,042 --> 00:32:14,209
Se ao menos pudesse ver a luz!
326
00:32:21,751 --> 00:32:26,042
A luz que desobstrui e arrisca,
libertando a mente �vida e cega.
327
00:32:32,209 --> 00:32:35,292
Mas tal luz, eu s� a posso recriar.
328
00:32:48,667 --> 00:32:53,918
O dia 23 de Julho de 1599
� um dia �nico. Irrepet�vel.
329
00:32:55,334 --> 00:32:58,584
Caravaggio assina o contrato
para fazer dois grandes quadros
330
00:32:58,667 --> 00:33:01,042
que ocupar�o as paredes laterais
da Capela Contarelli
331
00:33:01,125 --> 00:33:02,834
em San Luigi dei Francesi:
332
00:33:03,709 --> 00:33:06,584
"A Voca��o de S�o Mateus"
e o "Mart�rio de S�o Mateus",
333
00:33:06,667 --> 00:33:08,751
as suas primeiras obras p�blicas.
334
00:33:14,709 --> 00:33:19,209
� uma encomenda prestigiosa,
� luz do iminente Jubileu de 1600,
335
00:33:19,292 --> 00:33:23,501
no qual participaram numerosos artistas
para tornar Roma moderna
336
00:33:23,584 --> 00:33:27,626
e celebrar assim o triunfo
da Igreja Cat�lica sobre o Protestantismo.
337
00:33:36,042 --> 00:33:40,876
O Cardeal Matteo Contarelli confiara
aos seus executores testament�rios
338
00:33:40,959 --> 00:33:44,083
a tarefa de fazer decorar
a sua capela funer�ria
339
00:33:44,167 --> 00:33:48,459
com uma s�rie de quadros que contassem
a hist�ria do Ap�stolo Mateus,
340
00:33:48,542 --> 00:33:50,250
o seu hom�nimo.
341
00:33:57,167 --> 00:34:00,250
Ap�s v�rias tentativas falhadas
por parte dos artistas precedentes,
342
00:34:00,334 --> 00:34:03,459
Caravaggio teve a oportunidade
de mostrar o que valia
343
00:34:03,542 --> 00:34:07,042
na arena p�blica da pintura religiosa
de grande escala.
344
00:34:07,417 --> 00:34:12,542
Ele que, at� ali, nunca pintara
telas com mais de 150 cm de largura,
345
00:34:13,209 --> 00:34:16,501
confrontava-se agora
com telas de tr�s metros.
346
00:34:18,209 --> 00:34:22,792
Na Capela de Contarelli, Caravaggio
deparou-se com uma grande dificuldade.
347
00:34:22,876 --> 00:34:27,999
Eram telas enormes e ele tinha
pouqu�ssimo tempo para as pintar.
348
00:34:28,042 --> 00:34:31,584
Tinham de ser povoadas
por uma s�rie de personagens,
349
00:34:31,667 --> 00:34:33,918
o que n�o estava na sua �ndole.
350
00:34:33,999 --> 00:34:38,584
Al�m disso, estreava-se no meio art�stico
romano, que seguramente n�o o apreciava.
351
00:34:51,375 --> 00:34:53,584
Em "Voca��o de S�o Mateus",
352
00:34:53,667 --> 00:34:56,167
a cena est� imersa
numa soturna penumbra.
353
00:34:57,999 --> 00:35:00,999
A luz n�o prov�m da enorme janela,
354
00:35:01,042 --> 00:35:05,501
mas parece entrar no quadro, como se
fosse projectada pelo bra�o de Cristo,
355
00:35:06,459 --> 00:35:09,542
cujo gesto tanto lembra o de Deus Pai,
356
00:35:09,626 --> 00:35:13,959
pintado pelo outro grande Michelangelo
no tecto da Capela Sistina.
357
00:35:16,375 --> 00:35:19,334
Cristo indica Mateus,
um cobrador de impostos,
358
00:35:19,417 --> 00:35:24,626
enquanto alguns dos presentes nem
notam a sua entrada com S�o Pedro.
359
00:35:34,459 --> 00:35:38,834
Um dos homens sentado � mesa
olha para Cristo
360
00:35:38,918 --> 00:35:41,709
e parece apontar para si mesmo,
como que dizendo:
361
00:35:41,999 --> 00:35:43,834
"Sou eu o eleito?"
362
00:35:46,125 --> 00:35:48,834
Mas esta interpreta��o n�o � un�nime:
363
00:35:48,918 --> 00:35:54,292
h� quem argumente que Mateus
� o jovem que conta avidamente o dinheiro.
364
00:35:59,876 --> 00:36:02,792
A "Voca��o" desperta
calorosas discuss�es,
365
00:36:02,876 --> 00:36:05,292
divididas entre a admira��o e a inveja,
366
00:36:05,375 --> 00:36:09,417
tornando-se provavelmente
a obra mais famosa de Caravaggio.
367
00:36:13,083 --> 00:36:17,959
Na Capela Contarelli, Caravaggio
desenvolve uma nova t�cnica executiva.
368
00:36:17,999 --> 00:36:20,876
A base, usualmente clara,
torna-se escura.
369
00:36:20,959 --> 00:36:22,751
Nesta base escura,
370
00:36:22,834 --> 00:36:26,125
o desenho tradicional
por si usado at� �quela altura,
371
00:36:26,209 --> 00:36:27,584
deixa de ser vis�vel.
372
00:36:27,667 --> 00:36:29,083
Da� que nessa altura,
373
00:36:29,167 --> 00:36:35,584
ele tenha encontrado outra forma
de marcar a composi��o na tela escura.
374
00:36:37,209 --> 00:36:40,375
Em vez de desenhar, recorre � grava��o,
375
00:36:40,459 --> 00:36:44,042
grava��o que ele realizava
com um instrumento agu�ado,
376
00:36:44,125 --> 00:36:47,751
h� quem pense que ele usaria
a ponta afiada do pincel,
377
00:36:47,834 --> 00:36:51,042
para marcar as linhas
no preparo de base ainda fresco.
378
00:36:53,834 --> 00:37:01,042
Essa prepara��o escura tamb�m � usada para
fazer o fundo escuro dos seus quadros,
379
00:37:01,125 --> 00:37:03,375
e para todas as partes da sombra.
380
00:37:03,459 --> 00:37:05,959
Com efeito,
a partir da Capela Contarelli,
381
00:37:05,999 --> 00:37:10,375
Caravaggio s� pintou figuras
� luz ou � meia-luz.
382
00:37:10,459 --> 00:37:15,459
Tudo o que n�o est� na luz ou na penumbra,
pura e simplesmente n�o existe.
383
00:37:25,501 --> 00:37:29,209
A tela do "Mart�rio"
cont�m um pormenor fascinante:
384
00:37:30,083 --> 00:37:34,459
no fundo � esquerda, vislumbra-se
um personagem que se afasta,
385
00:37:34,709 --> 00:37:39,209
horrorizado com a terr�vel de explos�o
de viol�ncia a que acaba de assistir.
386
00:37:44,918 --> 00:37:47,125
� um auto-retrato de Caravaggio,
387
00:37:47,209 --> 00:37:51,125
que mostra a sua verdadeira reac��o
assustada e quase repugnada
388
00:37:51,209 --> 00:37:53,876
relativamente � obra
que ele mesmo produziu.
389
00:37:54,667 --> 00:37:58,999
Um caso absolutamente �nico
em toda a hist�ria da pintura ocidental.
390
00:38:06,459 --> 00:38:10,999
Bellori conta que Caravaggio
pintou "O Mart�rio" duas vezes.
391
00:38:11,042 --> 00:38:15,209
Esta afirma��o s� foi confirmada
no s�culo XX, pelos investigadores,
392
00:38:15,292 --> 00:38:17,042
que, atrav�s de radiografias,
393
00:38:17,125 --> 00:38:20,375
comprovaram a permanente
mudan�a de ideias do artista
394
00:38:20,459 --> 00:38:22,417
na composi��o da cena.
395
00:38:40,959 --> 00:38:45,459
Os dois quadros de Contarelli
s�o aut�nticos combates figurativos,
396
00:38:45,959 --> 00:38:50,584
um espelho do esp�rito de Caravaggio,
num estado de permanente agita��o.
397
00:38:57,876 --> 00:39:00,792
Caravaggio tamb�m pintou
a pe�a de altar da Capela.
398
00:39:01,501 --> 00:39:04,584
Esta representa S�o Mateus
a escrever o Evangelho
399
00:39:04,667 --> 00:39:07,209
guiado por um anjo que desce do C�u.
400
00:39:07,292 --> 00:39:10,459
Mas atr�s desta tela
h� um mist�rio por resolver.
401
00:39:19,542 --> 00:39:24,083
� Baglione quem nos recorda que o Marqu�s
Vincenzo Giustiniani comprou uma tela
402
00:39:24,167 --> 00:39:28,792
de "um certo S�o Mateus que Caravaggio
tivera feito para o altar de San Luigi,"
403
00:39:28,876 --> 00:39:30,626
e que n�o agradara a ningu�m".
404
00:39:31,209 --> 00:39:34,417
Trata-se da primeira vers�o
de "S�o Mateus e o Anjo",
405
00:39:34,501 --> 00:39:38,250
que, ap�s v�rias vicissitudes,
acabou no Museu de Estado de Berlim,
406
00:39:38,501 --> 00:39:42,083
vindo a ser destru�do num bombardeamento
na II Guerra Mundial.
407
00:39:43,417 --> 00:39:48,667
H� uma foto da obra perdida que mostra
o ap�stolo curiosamente caracterizado
408
00:39:48,751 --> 00:39:52,250
como um fil�sofo da Antiguidade
ou como um judeu erudito,
409
00:39:52,334 --> 00:39:55,542
enquanto que o anjo � andr�geno
e muito sensual.
410
00:39:58,042 --> 00:40:01,626
N�o se sabe porque � que esta
primeira vers�o foi recusada,
411
00:40:01,709 --> 00:40:05,083
eventualmente poder� ter sido
por falta de "decoro".
412
00:40:08,751 --> 00:40:11,667
O santo pareceria um analfabeto,
413
00:40:11,751 --> 00:40:14,709
apenas capaz de escrever
o que lhe ditassem,
414
00:40:14,792 --> 00:40:16,834
guiado pela m�o ang�lica.
415
00:40:26,709 --> 00:40:32,626
A Capela torna-se para Caravaggio
um prestigioso cart�o-de-visita.
416
00:40:58,959 --> 00:41:00,334
Sou um homem de valor.
417
00:41:00,417 --> 00:41:05,167
S� reconhe�o os bons pintores,
admiro-os e aprecio a sua arte.
418
00:41:06,292 --> 00:41:10,626
Mas tamb�m sei distinguir aqueles
que se gabam inutilmente de o ser.
419
00:41:10,792 --> 00:41:14,167
Considero-os ignorantes.
420
00:41:15,209 --> 00:41:19,125
Os homens de valor s�o aqueles que
entendem profundamente de pintura,
421
00:41:19,209 --> 00:41:24,083
e s�o capazes de reproduzir a realidade,
de forma natural, como eu fa�o.
422
00:41:24,626 --> 00:41:26,918
As palavras dos outros, leva-as o vento.
423
00:41:27,584 --> 00:41:29,834
Eu deixo que sejam
as obras a falar de mim.
424
00:41:46,999 --> 00:41:50,250
N�o s�o apenas as obras
que falam de Caravaggio,
425
00:41:51,584 --> 00:41:53,167
mas tamb�m os documentos.
426
00:41:55,125 --> 00:41:57,209
Muitas vezes, processos judiciais.
427
00:41:59,459 --> 00:42:03,125
O Arquivo de Roma
conserva testemunhos muito preciosos.
428
00:42:04,042 --> 00:42:07,999
Capazes de se projectar na vida
e nos problemas de Caravaggio.
429
00:42:12,083 --> 00:42:16,042
As actas do Processo Baglione,
que decorreu em 1603,
430
00:42:16,459 --> 00:42:19,417
narra as alian�as e as invejas
entre os artistas,
431
00:42:19,501 --> 00:42:23,459
mas sobretudo revelam a teoria
de Caravaggio sobre a pintura.
432
00:42:25,792 --> 00:42:31,209
"Um pintor que se preze � aquele que sabe
pintar bem e reproduzir as coisas naturais".
433
00:42:32,626 --> 00:42:36,501
E nesse aspecto,
ele era o melhor de todos.
434
00:42:39,999 --> 00:42:42,999
Caravaggio foi chamado a depor
no Processo Baglione,
435
00:42:43,042 --> 00:42:47,501
porque ele e os amigos Onorio Longhi
e Orazio Gentileschi
436
00:42:47,584 --> 00:42:50,459
tinham espalhado pela cidade
uma s�rie de versos ofensivos
437
00:42:50,542 --> 00:42:53,626
contra o seu futuro bi�grafo,
que tamb�m era pintor.
438
00:43:03,375 --> 00:43:06,792
Contudo, a par de mais
um encontro com a justi�a,
439
00:43:07,501 --> 00:43:09,999
surge-lhe uma grande oportunidade:
440
00:43:10,459 --> 00:43:12,959
trabalhar na Bas�lica
de Santa Maria del Popolo.
441
00:43:26,999 --> 00:43:30,250
Aqui, muito provavelmente,
mal chegou a Roma,
442
00:43:30,334 --> 00:43:33,626
Caravaggio tinha admirado
os frescos de Pinturicchio
443
00:43:37,250 --> 00:43:40,167
e a capela projectada por Raffaello.
444
00:43:47,918 --> 00:43:50,918
Encomendam-lhe dois quadros
pintados em madeira,
445
00:43:50,999 --> 00:43:54,751
destinados a ladear o altar
da Capela Cerasi.
446
00:44:03,250 --> 00:44:08,042
Caravaggio assinou o contrato
enquanto trabalhava na Capela Contarelli,
447
00:44:08,125 --> 00:44:12,709
o que indica o imediato sucesso obtido
com as suas primeiras obras p�blicas.
448
00:44:14,375 --> 00:44:18,083
No entanto, o epis�dio dos quadros Cerasi
foi muito atribulado.
449
00:44:18,751 --> 00:44:24,417
Segundo Baglione, "os quadros foram
trabalhados primeiro por ele de outra maneira",
450
00:44:24,501 --> 00:44:28,501
mas como o mecenas n�o gostou deles,
foram adquiridos pelo Cardeal Sannesio.
451
00:44:29,417 --> 00:44:32,167
Os dois quadros foram assim
recusados por Cerasi.
452
00:44:32,792 --> 00:44:35,918
Caravaggio n�o teve outro rem�dio
sen�o recome�ar,
453
00:44:35,999 --> 00:44:39,125
desta vez com a sua t�cnica preferida:
�leo sobre tela.
454
00:44:39,959 --> 00:44:41,918
E o resultado foi surpreendente.
455
00:44:48,792 --> 00:44:50,542
Na Crucifica��o de S�o Pedro,
456
00:44:50,626 --> 00:44:55,542
os executores que puxam a Cruz
s�o representados im�veis,
457
00:44:55,626 --> 00:44:56,999
como que petrificados.
458
00:45:05,584 --> 00:45:09,375
Mas a obra-prima da Capela �
"A Convers�o de S�o Paulo".
459
00:45:10,375 --> 00:45:12,667
Trata-se de uma obra sem fundo,
460
00:45:13,250 --> 00:45:17,209
na qual Caravaggio concentra
todo o sentido na narrativa pict�rica
461
00:45:17,292 --> 00:45:19,584
na descri��o da singular figura,
462
00:45:20,834 --> 00:45:22,918
eliminando tudo o que � sup�rfluo.
463
00:45:22,999 --> 00:45:25,584
E reduzindo a tela ao que � essencial.
464
00:45:31,584 --> 00:45:33,542
O soldado ca�do do cavalo
465
00:45:33,626 --> 00:45:38,083
abre os bra�os como se acolhesse
a luz que chove do c�u.
466
00:45:44,792 --> 00:45:49,667
A hist�ria, a narra��o contida na obra,
� carente de ac��o.
467
00:45:49,751 --> 00:45:53,709
Porque o quadro imobiliza o personagem
no momento do gesto definitivo,
468
00:45:54,125 --> 00:45:57,459
um gesto que transmite
uma sensa��o de absoluta imobilidade,
469
00:45:57,999 --> 00:46:02,167
do qual emerge um profund�ssimo
contraste entre as profundas trevas,
470
00:46:02,250 --> 00:46:03,999
e a luz ofuscante.
471
00:46:27,209 --> 00:46:32,209
Mais uma obra de exibi��o p�blica
e uma absoluta obra-prima,
472
00:46:32,459 --> 00:46:36,334
� a "Deposi��o de Cristo",
hoje nos Museus Vaticanos.
473
00:46:42,292 --> 00:46:45,709
Caravaggio imortaliza o momento
que precede o sepultamento,
474
00:46:46,167 --> 00:46:47,959
a descida ao sepulcro.
475
00:46:49,501 --> 00:46:52,876
A morte de Cristo � representada
com implac�vel realismo.
476
00:46:53,918 --> 00:46:58,375
O corpo est� l�vido,
e o bra�o parece pender inerte.
477
00:47:02,334 --> 00:47:06,125
Neste momento,
Cristo � uma pe�a descartada da hist�ria.
478
00:47:06,209 --> 00:47:09,083
Est� morto, derrotado, perdido.
479
00:47:12,542 --> 00:47:15,501
Os disc�pulos abandonaram-no
e renegaram-no.
480
00:47:17,501 --> 00:47:21,375
A sua maravilhosa utopia
parece ter terminado na Cruz
481
00:47:22,334 --> 00:47:25,626
e agora dissolver-se-� para sempre
no Sepulcro.
482
00:47:49,042 --> 00:47:50,999
Pelas mulheres que conheci,
483
00:48:01,999 --> 00:48:03,918
por aquelas que tive ao meu lado,
484
00:48:14,876 --> 00:48:16,792
por aquelas que me escaparam,
485
00:48:20,250 --> 00:48:21,876
por aquelas que amei,
486
00:48:25,667 --> 00:48:27,125
por aquelas que me odiaram,
487
00:48:30,125 --> 00:48:31,999
por aquelas que usei,
488
00:48:33,459 --> 00:48:35,042
por aquelas que pintei,
489
00:48:41,125 --> 00:48:43,459
por aquelas que ainda n�o conhe�o,
490
00:48:47,209 --> 00:48:49,042
por aquelas que ainda vir�o.
491
00:48:57,375 --> 00:48:59,999
Por todas elas... eu vivo.
492
00:49:18,999 --> 00:49:23,459
Um pano de amarelo intenso cai sobre
as pernas de Madalena Penitente.
493
00:49:24,792 --> 00:49:29,709
Um len�o delicado, tamb�m amarelo,
cobre os ombros da Madona de Loreto.
494
00:49:34,167 --> 00:49:35,999
N�o � uma coincid�ncia.
495
00:49:36,751 --> 00:49:39,999
O amarelo era a cor que as prostitutas
eram obrigadas a usar
496
00:49:40,042 --> 00:49:42,125
para serem reconhec�veis.
497
00:49:43,709 --> 00:49:47,125
E as modelos de Caravaggio
eram muitas vezes prostitutas.
498
00:49:54,375 --> 00:49:59,417
As duas mais ass�duas eram
Anna Bianchini e Fillide Melandroni,
499
00:49:59,751 --> 00:50:04,834
cujas fei��es poderiam distinguir-se
em "Marta e Maria Madalena".
500
00:50:07,417 --> 00:50:11,584
Caravaggio queria sublinhar
a diferen�a entre as duas figuras,
501
00:50:11,667 --> 00:50:14,834
o seu estatuto social, melhor dizendo.
502
00:50:17,667 --> 00:50:20,584
Veja-se a simplicidade
da mulher da esquerda,
503
00:50:20,959 --> 00:50:24,209
por oposi��o ao luxo,
ao vestido delicad�ssimo
504
00:50:24,292 --> 00:50:28,083
e � manga elaborad�ssima
da figura central.
505
00:50:33,250 --> 00:50:36,167
O quadro � a
"Convers�o de Maria Madalena",
506
00:50:36,250 --> 00:50:39,459
que se prepara
para abandonar mentalmente
507
00:50:39,542 --> 00:50:44,999
a sua vida pecaminosa,
de luxo e de prazeres,
508
00:50:45,083 --> 00:50:49,667
e ouve o que lhe diz
a mulher que est� a seu lado,
509
00:50:49,751 --> 00:50:55,999
cuja posi��o da m�o nos leva a perceber
que lhe faz um discurso para a persuadir,
510
00:50:56,083 --> 00:51:00,999
confrontando a jovem
assim moderna e refinada.
511
00:51:03,999 --> 00:51:08,501
Anna Bianchini poder� ter emprestado
o seu rosto tamb�m a "Madalena Penitente".
512
00:51:10,334 --> 00:51:12,709
Caravaggio deve ter achado oportuno,
513
00:51:12,792 --> 00:51:16,876
usar uma verdadeira pecadora
para representar uma santa convertida,
514
00:51:16,959 --> 00:51:20,334
um modo laico e simples
de interpretar o tema religioso.
515
00:51:21,709 --> 00:51:24,125
Mas revelou-se uma jogada arriscada,
516
00:51:24,542 --> 00:51:26,459
a primeira de uma longa s�rie.
517
00:51:32,584 --> 00:51:36,667
Fillide foi a escolhida para servir
de modelo para "Judite e Holofernes"
518
00:51:37,250 --> 00:51:41,709
uma obra de viol�ncia desconcertante,
hoje em exibi��o no Pal�cio Barberini.
519
00:51:43,542 --> 00:51:48,834
O tema b�blico � uma par�bola da virtude
submissa que triunfa sobre a for�a tir�nica.
520
00:51:52,792 --> 00:51:55,876
A hero�na judia
seduz o cruel general ass�rio,
521
00:51:56,542 --> 00:51:59,250
que depois mata, com a espada.
522
00:52:07,999 --> 00:52:10,959
Holofernes, jazendo nu sobre os len��is,
523
00:52:10,999 --> 00:52:12,918
cometeu um terr�vel erro.
524
00:52:14,334 --> 00:52:16,876
Judite agarra-o brutalmente
pelos cabelos,
525
00:52:16,959 --> 00:52:20,584
esticando a carne para que a l�mina
corte mais facilmente.
526
00:52:22,083 --> 00:52:25,751
Ela, ferozmente concentrada,
de sobrolho franzido,
527
00:52:26,501 --> 00:52:30,542
enquanto ele, acordado apenas
para se aperceber que � o seu fim,
528
00:52:30,626 --> 00:52:33,209
lan�a um �ltimo grito atroz.
529
00:53:07,959 --> 00:53:11,584
E talvez outra prostituta,
Maddalena Antognetti,
530
00:53:11,667 --> 00:53:15,375
descrita em muitas cr�nicas como
"Lena, a mulher de Michelangelo",
531
00:53:15,459 --> 00:53:18,292
seja a modelo utilizada
para a "Madona de Loreto",
532
00:53:18,709 --> 00:53:23,125
destinada � Capela Cavalletti
na Bas�lica de Sant'Agostino,
533
00:53:23,209 --> 00:53:26,834
onde as pr�prias prostitutas
costumavam vir rezar.
534
00:53:28,459 --> 00:53:30,584
A obra causa um verdadeiro esc�ndalo.
535
00:53:31,459 --> 00:53:35,584
Destinava-se a ser exibida publicamente
e, como tal, exigia o maior decoro.
536
00:53:37,959 --> 00:53:42,209
Nunca se tinham visto em quadros
peregrinos t�o sujos e miser�veis.
537
00:53:44,751 --> 00:53:48,959
Caravaggio concentra a sua aten��o
numa humanidade miser�vel:
538
00:53:50,125 --> 00:53:55,375
� nos �ltimos, nos deserdados, que encontra
a condi��o mais digna de ser representada.
539
00:53:56,250 --> 00:53:57,834
Porque � a mais real.
540
00:54:17,918 --> 00:54:21,042
"Farei reinar a inimizade
entre ti e a mulher,"
541
00:54:21,125 --> 00:54:23,125
"entre a tua descend�ncia e a dela."
542
00:54:23,209 --> 00:54:27,459
"Esta esmagar-te-� a cabe�a
e tu tentar�s mord�-la no calcanhar".
543
00:54:30,167 --> 00:54:34,876
Foi esta passagem do "G�nesis" que
inspirou a "Madonna dei Palafrenieri",
544
00:54:35,125 --> 00:54:38,626
um quadro com quase tr�s metros de altura
por duas de largura,
545
00:54:38,709 --> 00:54:42,334
encomendada pela Irmandade
Palafrenieri di Sant'Anna
546
00:54:42,417 --> 00:54:45,709
e destinada a um altar
da Bas�lica de S�o Pedro.
547
00:54:49,334 --> 00:54:53,125
A Virgem, em cujo rosto
se v�em os tra�os de Lena,
548
00:54:53,209 --> 00:54:57,876
a Crian�a e Santa Ana est�o empenhados
numa luta contra a maldade pura.
549
00:54:59,167 --> 00:55:04,167
A Madona e o Menino Jesus espezinham
juntos a cabe�a de uma serpente.
550
00:55:04,834 --> 00:55:07,584
A nefasta criatura
contorce-se em agonia,
551
00:55:07,667 --> 00:55:11,584
enquanto Santa Ana fixa a cena,
em solene contempla��o.
552
00:55:12,792 --> 00:55:15,417
O fasc�nio da Virgem parece evidente,
553
00:55:15,959 --> 00:55:18,417
sobretudo se comparado com a Santa,
554
00:55:18,667 --> 00:55:22,125
que � representada
como uma mulher velha e fr�gil.
555
00:55:26,459 --> 00:55:29,999
Caravaggio entrega a obra
a 8 de Abril de 1606,
556
00:55:30,417 --> 00:55:32,751
dando ao C�nego da Irmandade,
557
00:55:32,834 --> 00:55:36,501
a �nica declara��o existente,
escrita pelo seu punho,
558
00:55:36,792 --> 00:55:41,834
na qual se afirma "contente e satisfeito"
com a obra realizada.
559
00:55:44,250 --> 00:55:48,042
O quadro "Madonna dei Palafrenieri"
� exibida apenas por uns dias
560
00:55:48,125 --> 00:55:51,792
no altar da Capela de S�o Miguel,
o Arcanjo, na Bas�lica de S�o Pedro.
561
00:55:51,876 --> 00:55:54,918
O inapel�vel veredicto
d�-o como "Recusado".
562
00:55:55,959 --> 00:55:58,501
E � rapidamente removido.
563
00:56:00,459 --> 00:56:05,626
Resta-nos imaginar o enorme impacto
cenogr�fico que a tela ter� provocado,
564
00:56:05,709 --> 00:56:08,999
se tivesse permanecido
no seu lugar original.
565
00:56:19,083 --> 00:56:22,501
Rapidamente se espalhou o boato
de que fora Scipione Borghese,
566
00:56:22,584 --> 00:56:24,042
o sobrinho do Papa Paulo V,
567
00:56:24,125 --> 00:56:27,083
a determinar a recusa
de "Madonna dei Palafrenieri"
568
00:56:27,167 --> 00:56:29,375
para a poder comprar a bom pre�o.
569
00:56:29,834 --> 00:56:30,876
Obcecado por arte,
570
00:56:30,959 --> 00:56:34,959
o Cardeal procurava apoderar-se das
melhores obras, sem olhar a meios,
571
00:56:35,501 --> 00:56:38,999
constituindo aquela que se tornar�
a colec��o da Galeria Borghese,
572
00:56:39,334 --> 00:56:41,584
onde a tela ainda hoje se pode ver.
573
00:56:55,876 --> 00:57:00,999
A vida do artista, paralelamente �
dolorosa rejei��o, volta a complicar-se
574
00:57:01,751 --> 00:57:04,667
e o tribunal � chamado a resolver
mais uma questi�ncula.
575
00:57:05,918 --> 00:57:09,751
Prudenzia Bruni, a propriet�ria da casa
situada em Vicolo del Divino Amore,
576
00:57:10,167 --> 00:57:13,375
queixa-se de que o pintor
n�o tem pago a renda.
577
00:57:14,501 --> 00:57:19,209
Presente a tribunal, � declarada
a confisca��o de todos os seus bens,
578
00:57:19,999 --> 00:57:22,959
S�o os objectos que podemos ver
nos seus quadros,
579
00:57:23,751 --> 00:57:28,250
os seus "objectos de cena", que s�o
enumerados numa esp�cie de invent�rio.
580
00:57:31,626 --> 00:57:36,584
Nesse per�odo, Caravaggio trabalhava
numa das suas obras mais controversas,
581
00:57:36,999 --> 00:57:38,626
"A Morte da Virgem".
582
00:57:44,375 --> 00:57:47,667
Talvez Caravaggio tenha esperado demais
de si mesmo.
583
00:57:47,918 --> 00:57:51,125
Isso acontece
quando se tem muito sucesso.
584
00:57:51,209 --> 00:57:53,375
Deve ter pensado a dada altura,
585
00:57:53,459 --> 00:57:57,125
que estava em posi��o
de poder permitir-se fazer coisas
586
00:57:57,209 --> 00:57:59,918
que nenhum outro artista
ousara fazer at� a�.
587
00:57:59,999 --> 00:58:04,542
Ou seja: ir contra as instru��es
do cliente.
588
00:58:05,209 --> 00:58:08,626
Sobretudo em "A Morte da Virgem",
faz uma coisa terr�vel:
589
00:58:08,709 --> 00:58:12,167
omitiu um pormenor
que � fundamental para a Igreja.
590
00:58:12,250 --> 00:58:14,626
Quando a Virgem morre,
ascende ao C�u,
591
00:58:14,709 --> 00:58:17,626
e em todas as representa��es
da morte da Virgem,
592
00:58:17,709 --> 00:58:19,626
feitas em s�culos anteriores,
593
00:58:19,709 --> 00:58:20,709
o que se v� � o seguinte;
594
00:58:20,792 --> 00:58:24,292
a Virgem morta,
os ap�stolos que a choram,
595
00:58:24,375 --> 00:58:26,709
e, l� no alto, no reino dos C�us,
596
00:58:26,792 --> 00:58:29,751
v�-se a Virgem que entrou no Reino,
597
00:58:29,834 --> 00:58:33,501
onde � acolhida por Cristo
e nomeada "Regina Caelorum".
598
00:58:34,542 --> 00:58:37,501
Mas a "Regina Caelorum"
n�o figura neste quadro.
599
00:58:37,584 --> 00:58:41,417
E para fazer de modelo � Virgem,
diz-se e � verdade,
600
00:58:41,501 --> 00:58:46,459
que Caravaggio usou uma mulher morta,
provavelmente uma prostituta,
601
00:58:46,542 --> 00:58:50,999
que se afogara no Tibre, e na verdade ela
est� algo inchada, como que cheia de �gua.
602
00:58:51,250 --> 00:58:55,042
Ele colocou-a naquela laje terr�vel,
caracter�stica das morgues,
603
00:58:55,501 --> 00:58:59,459
assim mesmo,
sem qualquer caracteriza��o sacra.
604
00:59:02,125 --> 00:59:05,584
Isto cria de imediato
um verdadeiro esc�ndalo.
605
00:59:21,959 --> 00:59:23,626
Tenho de parar.
606
00:59:23,709 --> 00:59:25,292
P�ra, m�o.
607
00:59:25,459 --> 00:59:26,792
Extingue-te, raiva.
608
00:59:29,501 --> 00:59:33,709
N�o sei controlar a for�a irreprim�vel
que sinto, cada vez mais impetuosa.
609
00:59:34,083 --> 00:59:36,751
Como ondas que engrossam
um mar tempestuoso,
610
00:59:36,834 --> 00:59:40,167
assim a raiva cresce dentro de mim
e das minhas entranhas chega � espada,
611
00:59:40,250 --> 00:59:42,626
onde infelizmente n�o se det�m.
612
00:59:57,250 --> 00:59:59,542
Teria bastado
um cent�metro mais ao lado,
613
00:59:59,876 --> 01:00:02,042
um golpe menos incisivo,
614
01:00:02,375 --> 01:00:03,975
e a minha vida
teria seguido outro curso.
615
01:00:12,999 --> 01:00:14,834
Eu mesmo me condenei...
616
01:00:15,125 --> 01:00:16,250
ao ex�lio eterno.
617
01:00:36,292 --> 01:00:40,501
A rejei��o da "Madona dei Palafrenieri"
e de "A Morte da Virgem",
618
01:00:40,584 --> 01:00:43,667
foram duros golpes para a mente
j� atormentada de Caravaggio.
619
01:00:44,999 --> 01:00:47,459
A escurid�o apropriava-se
cada vez mais da sua vida.
620
01:00:51,167 --> 01:00:53,709
N�o � dif�cil imaginar
a sua melancolia pela manh�,
621
01:00:53,792 --> 01:00:56,417
ao treinar o seu c�o negro, Cornacchia,
622
01:00:56,626 --> 01:00:59,209
ou ao pintar freneticamente
no quarto sombrio,
623
01:00:59,709 --> 01:01:02,250
ou quando deambulava
pelos campos de t�nis.
624
01:01:04,167 --> 01:01:07,042
� durante uma partida
que acontece o irrepar�vel.
625
01:01:08,584 --> 01:01:10,209
O dia mais terr�vel.
626
01:01:10,501 --> 01:01:12,709
O dia 29 de Maio de 1606.
627
01:01:15,417 --> 01:01:17,334
Em Campo Marzio, uma discuss�o,
628
01:01:17,417 --> 01:01:20,999
talvez acerca do pr�prio jogo,
acaba em trag�dia.
629
01:01:22,999 --> 01:01:25,375
Caravaggio mata Ranuccio Tomassoni,
630
01:01:25,459 --> 01:01:28,250
com o qual no passado
j� tivera fortes desaven�as.
631
01:01:29,375 --> 01:01:32,542
A consequ�ncia � dif�cil de pronunciar:
632
01:01:33,042 --> 01:01:34,542
ex�lio permanente,
633
01:01:35,584 --> 01:01:37,834
que podia comportar
a condena��o � morte.
634
01:01:38,459 --> 01:01:40,083
Por decapita��o.
635
01:01:44,459 --> 01:01:46,751
Caravaggio v�-se obrigado a fugir.
636
01:01:47,167 --> 01:01:51,375
Costanza Sforza Colonna, a Marquesa
de Caravaggio, vem em seu socorro.
637
01:01:51,918 --> 01:01:56,584
A Marquesa j� salvara o pintor em momentos
mais conturbados da sua exist�ncia
638
01:01:56,959 --> 01:02:00,709
e que agora lhe facilita o ex�lio,
nos seus feudos em Lazio.
639
01:02:02,459 --> 01:02:07,501
Nesse curto per�odo, o artista pinta
a segunda vers�o de "Ceia em Ema�s",
640
01:02:07,834 --> 01:02:09,792
hoje na Pinacoteca de Brera.
641
01:02:11,417 --> 01:02:13,501
Uma cena sombria e simples,
642
01:02:13,584 --> 01:02:17,501
em que os poucos objectos sobre a mesa
projectam longas sombras.
643
01:02:30,042 --> 01:02:32,999
Esperan�oso de obter a revoga��o
do ex�lio permanente,
644
01:02:33,042 --> 01:02:34,834
Caravaggio dirige-se a N�poles.
645
01:02:36,501 --> 01:02:39,501
Est�-se no Outono
daquele fat�dico e desastroso ano:
646
01:02:39,834 --> 01:02:41,501
o ano de 1606.
647
01:02:41,918 --> 01:02:43,334
Ele tem 35 anos.
648
01:02:48,209 --> 01:02:51,834
"Porque eu tinha fome,
e tu deste-me de comer,"
649
01:03:28,876 --> 01:03:32,167
"Eu tinha sede,
e tu deste-me de beber,"
650
01:03:38,626 --> 01:03:40,959
"Eu era um forasteiro,
e tu acolheste-me."
651
01:03:43,751 --> 01:03:46,250
"Estava nu, e tu vestiste-me.
652
01:03:51,709 --> 01:03:54,292
"Estava doente, e tu visitaste-me.
653
01:04:00,334 --> 01:04:02,999
"Estava encarcerado,
e tu foste procurar-me."
654
01:04:07,584 --> 01:04:11,876
"Um homem perdido precisa dum ref�gio,
de conforto, de um abra�o..."
655
01:04:19,667 --> 01:04:22,542
"Fugi para encontrar uma nova casa."
656
01:04:26,959 --> 01:04:30,459
"N�o sou apenas um assassino,
n�o sou um cretino,"
657
01:04:30,584 --> 01:04:32,626
"n�o sou um homem violento."
658
01:04:38,042 --> 01:04:40,999
"Sou um homem que precisa de ajuda."
659
01:04:41,876 --> 01:04:46,042
"Um artista que procura miseric�rdia."
660
01:04:53,167 --> 01:04:55,999
Sa�do de Roma com fama
de perigoso delinquente,
661
01:04:56,501 --> 01:05:00,375
em N�poles, Caravaggio descobre
como a sua fama se estendeu
662
01:05:00,459 --> 01:05:02,209
para l� dos confins do Estado Pontif�cio.
663
01:05:02,584 --> 01:05:04,709
Aqui, tem fama de grande Mestre.
664
01:05:05,459 --> 01:05:07,167
A Pio Monte della Misericordia,
665
01:05:07,250 --> 01:05:11,250
a obra de caridade,
que ainda hoje subsiste,
666
01:05:11,667 --> 01:05:15,876
encomenda-lhe um quadro emblem�tico
da pr�pria companhia:
667
01:05:15,959 --> 01:05:17,459
"As Sete Obras de Miseric�rdia",
668
01:05:17,542 --> 01:05:20,751
que Caravaggio deve representar
num s� quadro.
669
01:05:26,334 --> 01:05:31,834
Naquela altura, Caravaggio sentia
profundamente o problema da miseric�rdia,
670
01:05:31,918 --> 01:05:35,250
pois ele pr�prio
precisava de miseric�rdia.
671
01:05:38,083 --> 01:05:42,626
Ele estava certamente bem protegido em
N�poles e ningu�m se atrevia a tocar-lhe,
672
01:05:42,751 --> 01:05:44,042
mas o quadro que ele executa
673
01:05:44,125 --> 01:05:48,584
� verdadeiramente como uma grandiosa
elegia, um grandioso poema �pico,
674
01:05:48,667 --> 01:05:51,918
em que na representa��o
das obras de miseric�rdia,
675
01:05:51,999 --> 01:05:55,542
Caravaggio representa na realidade
aquela c�lera interior terr�vel
676
01:05:55,626 --> 01:05:58,584
que ele queria mostrar ao mundo,
e, na verdade, consegue-o.
677
01:06:07,375 --> 01:06:12,250
Caravaggio recorre a um sistema
representativo completamente novo.
678
01:06:12,334 --> 01:06:15,834
Em vez de contar os factos isoladamente,
679
01:06:15,918 --> 01:06:18,999
representa um grupo de gente de N�poles
680
01:06:19,042 --> 01:06:22,167
naquelas ruazinhas estreitas de N�poles,
681
01:06:22,250 --> 01:06:26,334
em que cada uma delas pretende significar
uma das obras de miseric�rdia.
682
01:06:29,999 --> 01:06:32,083
"Dar de comer aos esfomeados,"
683
01:06:34,042 --> 01:06:35,999
"dar de beber aos sequiosos,"
684
01:06:37,501 --> 01:06:39,209
"vestir os nus"
685
01:06:40,375 --> 01:06:42,125
"alojar os peregrinos,"
686
01:06:42,918 --> 01:06:44,709
"curar os enfermos,"
687
01:06:44,876 --> 01:06:46,375
"visitar os encarcerados,"
688
01:06:46,792 --> 01:06:48,209
"sepultar os mortos."
689
01:06:55,417 --> 01:06:58,250
A coisa talvez mais bela
e mais comovente
690
01:06:58,334 --> 01:07:02,501
� a imagem de uma mulher
que do alto dum edif�cio
691
01:07:02,584 --> 01:07:07,999
olha para baixo e v� a vida na cidade
que se desenrola sob os seus olhos
692
01:07:08,083 --> 01:07:11,459
vida essa inspirada pela miseric�rdia.
693
01:07:13,751 --> 01:07:17,334
N�o � claro que seja a Virgem Maria
e que a crian�a seja Jesus Cristo.
694
01:07:17,417 --> 01:07:20,167
Parecem na realidade
uma m�e e um filho
695
01:07:20,250 --> 01:07:23,999
voltando ele mais uma vez
� grande tem�tica da m�e e do filho,
696
01:07:24,042 --> 01:07:25,375
o amor materno.
697
01:07:26,459 --> 01:07:28,959
E diante dela, pendem dois anjos,
698
01:07:28,999 --> 01:07:32,999
duas figuras ang�licas
de beleza impressionante.
699
01:07:33,042 --> 01:07:35,959
Mas sobretudo
com um significado formid�vel.
700
01:07:41,751 --> 01:07:43,709
S�o o Bem e o Mal,
701
01:07:43,792 --> 01:07:48,250
segundo uma interpreta��o maravilhosa
que emergiu neste nosso s�culo.
702
01:07:48,959 --> 01:07:51,334
S�o combatentes,
703
01:07:51,417 --> 01:07:55,083
dois anjos que lutam
pela vida dos homens.
704
01:07:55,167 --> 01:07:59,999
Um deles, o Anjo do Mal,
quer descer sobre a realidade humana,
705
01:08:00,083 --> 01:08:03,250
e o Anjo do Bem quer lev�-lo para longe.
706
01:08:06,292 --> 01:08:11,167
Enquanto decorre no C�u este encontro
metaf�sico verdadeiramente sublime,
707
01:08:11,250 --> 01:08:14,042
a vida pulsante do quotidiano
continua na cidade.
708
01:08:21,667 --> 01:08:26,125
Caravaggio recebe pela obra 400 scudi,
uma soma consider�vel.
709
01:08:26,501 --> 01:08:29,834
Em seis anos, o valor das suas
obras p�blicas multiplicara-se
710
01:08:30,167 --> 01:08:33,042
um claro sinal da sua fama crescente.
711
01:08:34,083 --> 01:08:35,751
Mas h� mais.
712
01:08:36,334 --> 01:08:40,999
Nas actas da reuni�o da direc��o
da Associa��o Pio Monte de 1613,
713
01:08:41,042 --> 01:08:44,999
fica estabelecido que o quadro
n�o deve ser retirado por motivo algum
714
01:08:45,083 --> 01:08:47,167
nem vendido por nenhuma soma.
715
01:08:49,542 --> 01:08:51,709
Diante deste novo sucesso,
716
01:08:51,792 --> 01:08:56,334
seria de esperar que o �nimo irrequieto de
Caravaggio pudesse finalmente encontrar paz.
717
01:08:59,751 --> 01:09:03,999
Umas semanas ap�s a instala��o
de "As Sete Obras de Miseric�rdia",
718
01:09:04,042 --> 01:09:08,167
o artista est� talvez de novo a trabalhar
na "Flagela��o de Cristo",
719
01:09:08,250 --> 01:09:10,667
hoje no Museu de Capodimonte.
720
01:09:15,375 --> 01:09:19,959
Uma composi��o em, que o artista
se concentra na sinistra mec�nica do Mal,
721
01:09:20,292 --> 01:09:23,876
sublinhando ao m�ximo
a crueldade e o sofrimento.
722
01:09:24,334 --> 01:09:27,751
E trazendo o observador muito pr�ximo
ao mal�fico acto de tortura.
723
01:09:29,542 --> 01:09:31,999
Os verdugos que atacam Cristo
724
01:09:32,042 --> 01:09:35,918
est�o dispostos em c�rculo � sua volta,
como que numa dan�a macabra,
725
01:09:35,999 --> 01:09:39,834
numa coreografia sugestiva
e carregada de tens�o.
726
01:09:46,167 --> 01:09:48,125
Jesus est� imerso na luz,
727
01:09:48,209 --> 01:09:52,083
como que a representar
a verdade que se contrap�e ao horror,
728
01:09:52,167 --> 01:09:55,584
sublinhado na penumbra
que envolve os carrascos.
729
01:10:01,959 --> 01:10:06,751
"Esta obra exposta ao p�blico atrai a si
todos os olhares de quem a observa."
730
01:10:07,167 --> 01:10:10,334
"A nova maneira daquele terr�vel
estilo de ensombramento,"
731
01:10:10,417 --> 01:10:13,834
"e o realismo daqueles nus
deixa-nos em suspenso,"
732
01:10:14,250 --> 01:10:17,876
escreveu o historiador napolitano,
Bernardo de Dominici.
733
01:10:30,542 --> 01:10:33,542
A situa��o de calma aparente
daquela estadia em N�poles,
734
01:10:33,626 --> 01:10:36,083
come�a por�m a preocupar Caravaggio,
735
01:10:36,292 --> 01:10:39,626
que receia que a sua ascens�o
esteja a chegar ao fim.
736
01:10:40,209 --> 01:10:42,584
Ap�s apenas um ano da sua chegada
a N�poles,
737
01:10:42,667 --> 01:10:45,209
apresenta-se uma outra grande ocasi�o,
738
01:10:45,292 --> 01:10:48,459
talvez ainda gra�as � intercess�o
de Costanza Colonna:
739
01:10:48,959 --> 01:10:51,083
a possibilidade de ir a Malta,
740
01:10:51,375 --> 01:10:54,501
naquela altura um centro de intenso
desenvolvimento art�stico e cultural.
741
01:10:55,042 --> 01:10:58,083
� recebido na ilha
como "o novo Apeles".
742
01:10:59,042 --> 01:11:01,709
Mas tamb�m aqui,
a quietude dura pouco.
743
01:11:11,542 --> 01:11:16,626
Depois de matar Ranuccio Tomassoni,
n�o h� noite em que consiga dormir.
744
01:11:19,417 --> 01:11:20,542
Nem uma!
745
01:11:20,709 --> 01:11:24,250
A minha mente n�o sossega,
mant�m-me acordado.
746
01:11:29,167 --> 01:11:31,542
Uma imagem paira
diante dos meus olhos.
747
01:11:32,167 --> 01:11:35,334
� a da minha cabe�a,
separada do corpo.
748
01:11:36,375 --> 01:11:38,999
Levada numa travessa,
como um trof�u.
749
01:11:45,375 --> 01:11:47,751
Ser� uma vis�o
do que poder� ser o meu futuro?
750
01:12:06,667 --> 01:12:08,709
O medo � pior do que a morte.
751
01:12:25,250 --> 01:12:29,333
A chegada a Malta de Caravaggio,
a 12 de Julho de 1607,
752
01:12:29,334 --> 01:12:32,209
fora preparada pela Marquesa Costanza,
753
01:12:32,292 --> 01:12:34,792
que chegara a acordo
com Alof de Wignacourt,
754
01:12:35,250 --> 01:12:37,999
Gr�o-Mestre
da Ordem dos Cavaleiros de Malta.
755
01:12:38,751 --> 01:12:44,083
Este j� procurava h� tempos um artista
que decorasse a catedral em constru��o,
756
01:12:44,167 --> 01:12:46,876
e Caravaggio parecia a pessoa ideal.
757
01:12:53,999 --> 01:12:56,667
Caravaggio � recebido
com todas as honras.
758
01:12:56,751 --> 01:13:00,918
O Gr�o-Mestre da Ordem de Malta,
Alof de Wignacourt, acolhe-o,
759
01:13:00,999 --> 01:13:03,334
como um homem de alt�ssimo m�rito,
760
01:13:03,417 --> 01:13:07,042
conforme se comprova
pelo decreto de nomea��o.
761
01:13:07,125 --> 01:13:09,918
Caravaggio torna-se cavaleiro
por m�rito pr�prio.
762
01:13:10,751 --> 01:13:12,542
N�o se tratava de uma recomenda��o,
763
01:13:12,626 --> 01:13:15,042
ele era um dos homens
mais merecedores do seu tempo.
764
01:13:15,125 --> 01:13:17,417
Ele faz um retrato do Gr�o-Mestre,
765
01:13:18,417 --> 01:13:21,334
um retrato hoje conservado no Louvre,
em Paris.
766
01:13:21,417 --> 01:13:25,083
Um retrato maravilhoso
que muito agrada a Alof de Wignacourt.
767
01:13:25,999 --> 01:13:30,792
As fei��es do Gr�o-Mestre s�o reproduzidas
por Caravaggio numa outra obra,
768
01:13:30,959 --> 01:13:32,709
"San Girolamo Scrivente",
769
01:13:33,042 --> 01:13:36,501
ainda hoje em exposi��o
na Co-Catedral de S�o Jo�o.
770
01:13:37,125 --> 01:13:41,709
Mas h� uma outra obra que est� destinada
a deixar eternamente o selo de Malta
771
01:13:41,792 --> 01:13:43,792
na hist�ria da arte...
772
01:13:46,209 --> 01:13:50,792
Caravaggio executa a obra-prima
das obras-primas em Malta,
773
01:13:50,999 --> 01:13:52,709
"A Decapita��o de S�o Jo�o Baptista".
774
01:14:03,918 --> 01:14:07,209
Caravaggio representa
o momento mais terr�vel
775
01:14:07,292 --> 01:14:11,125
da trag�dia de S�o Jo�o Baptista,
que acaba de ser decapitado,
776
01:14:11,209 --> 01:14:16,626
mas na imagina��o do artista, o golpe que
o carrasco desfere para lhe cortar a cabe�a
777
01:14:16,709 --> 01:14:18,792
n�o consegue separ�-la do corpo.
778
01:14:18,876 --> 01:14:24,209
Ent�o o carrasco pega num punhal de
l�mina curta, chamado "a miseric�rdia"
779
01:14:24,292 --> 01:14:28,167
porque permite ao condenado n�o sofrer
780
01:14:28,250 --> 01:14:31,417
para l� dos limites do que era permitido
� malvadez humana.
781
01:14:31,501 --> 01:14:36,042
E assim, com aquela l�mina,
inflige o golpe mortal final,
782
01:14:36,125 --> 01:14:39,918
libertando o condenado
pelo menos do tormento da dor,
783
01:14:43,999 --> 01:14:48,292
"A Decapita��o de S�o Jo�o Baptista"
obt�m um sucesso retumbante
784
01:14:48,375 --> 01:14:52,959
e � considerada uma das maiores obras
de arte de sempre, e �-o efectivamente.
785
01:14:52,999 --> 01:14:54,626
Mas de repente, tudo muda.
786
01:14:56,292 --> 01:15:01,667
Fontes indicam que houve uma briga
entre Caravaggio e outro cavaleiro,
787
01:15:01,751 --> 01:15:06,542
um Cavaleiro de Justi�a,
hierarquicamente superior.
788
01:15:23,292 --> 01:15:26,375
Caravaggio � detido
e enfiado numa "guva",
789
01:15:29,083 --> 01:15:33,125
uma das celas subterr�neas
do inexpugn�vel Forte de S�o Angelo,
790
01:15:34,751 --> 01:15:37,292
um lugar claustrof�bico, escuro...
791
01:15:38,834 --> 01:15:40,417
assustador.
792
01:15:47,626 --> 01:15:51,292
E o mais terr�vel � que lhe retiram tudo.
793
01:15:51,792 --> 01:15:53,667
Deixa de ser Cavaleiro,
794
01:15:53,751 --> 01:15:57,334
� at� publicado um decreto que o descreve
795
01:15:57,417 --> 01:16:00,667
como "um homem p�trido e f�tido",
literalmente.
796
01:16:00,959 --> 01:16:03,417
O insulto mais sanguinolento
que se possa fazer,
797
01:16:03,501 --> 01:16:07,292
a quem at� a� vivia
nos altares da gl�ria e da fama.
798
01:16:08,250 --> 01:16:11,918
Alof de Wignacourt apoia
a retirada dos privil�gios:
799
01:16:12,792 --> 01:16:15,501
Caravaggio deixa de ser
um Cavaleiro de Malta.
800
01:16:16,959 --> 01:16:18,792
Mas ele j� est� longe.
801
01:16:19,375 --> 01:16:22,999
Algu�m o ajudou a fugir para a Sic�lia.
802
01:16:32,542 --> 01:16:37,709
Um cronista da �poca
regista alguns testemunhos
803
01:16:37,792 --> 01:16:39,751
da chegada de Caravaggio a Siracusa.
804
01:16:39,834 --> 01:16:43,626
�-lhe encomendada
uma nova grande obra de arte
805
01:16:43,709 --> 01:16:48,334
ao n�vel daquela obra-prima
que ele acabara de produzir em Malta.
806
01:16:48,876 --> 01:16:53,876
A encomenda visava celebrar
a santa padroeira da cidade,
807
01:16:53,959 --> 01:16:57,417
a Santa L�cia, uma m�rtir dos
primeiros s�culos da era de Cristo,
808
01:16:57,501 --> 01:17:00,375
que convertida ao Cristianismo,
809
01:17:00,459 --> 01:17:03,626
se recusa a entregar-se ao seu noivo.
810
01:17:03,999 --> 01:17:08,125
E ele, enervado, no m�nimo,
perante tal situa��o,
811
01:17:08,209 --> 01:17:10,584
e querendo possu�-la,
mas n�o podendo,
812
01:17:10,667 --> 01:17:12,083
mata-a ou manda mat�-la.
813
01:17:13,709 --> 01:17:17,375
A obra, mais uma vez,
� um empreendimento tit�nico,
814
01:17:17,459 --> 01:17:19,918
a tela mede quatro metros de altura.
815
01:17:19,999 --> 01:17:22,209
Na realidade,
a �ltima actividade de Caravaggio
816
01:17:22,292 --> 01:17:26,334
est� totalmente concentrada neste sonho,
se podemos chamar-lhe assim,
817
01:17:26,417 --> 01:17:28,999
de se afastar das propor��es normais
818
01:17:29,083 --> 01:17:32,250
para executar obras imensas
que d�em a quem as observa
819
01:17:32,334 --> 01:17:36,125
a sensa��o de um espa�o
e de um tempo infinitos.
820
01:17:39,667 --> 01:17:45,501
A maior parte do quadro, o Sepultamento
de Santa Lucia, est� praticamente vazio.
821
01:17:46,042 --> 01:17:47,083
N�o h� nada.
822
01:17:47,459 --> 01:17:49,626
O corpo jaz por terra,
o bispo est� atr�s dela,
823
01:17:49,709 --> 01:17:52,334
que benze este momento crucial,
824
01:17:52,417 --> 01:17:54,999
e o povo que a circunda e a olha,
825
01:17:55,042 --> 01:17:58,918
com express�es entre o horrorizado
e o desesperado.
826
01:17:58,999 --> 01:18:00,501
Mas o interessante,
827
01:18:00,584 --> 01:18:02,709
� que inspirando-se provavelmente
828
01:18:02,792 --> 01:18:06,501
em alguns monumentos
que est�o ali, em Siracusa,
829
01:18:06,584 --> 01:18:10,999
monumentos arqueol�gicos que s�o como
catacumbas, a que chamam "latomie"...
830
01:18:12,334 --> 01:18:15,792
Caravaggio parece ter representado
um destes s�tios,
831
01:18:15,876 --> 01:18:18,751
porque sobre as cabe�as
das personagens
832
01:18:18,834 --> 01:18:22,250
parece haver um muro alt�ssimo,
escur�ssimo,
833
01:18:22,542 --> 01:18:24,751
absolutamente impenetr�vel ao olhar,
834
01:18:25,999 --> 01:18:28,167
como se Caravaggio
tivesse de alguma forma
835
01:18:28,250 --> 01:18:31,999
tivesse j� compreendido que a pintura
n�o � necessariamente
836
01:18:32,083 --> 01:18:35,459
uma arte que representa
coisas que se v�em.
837
01:18:35,542 --> 01:18:38,792
Pode representar tamb�m
aquilo que n�o se v�.
838
01:18:49,792 --> 01:18:52,918
A irrequietude e o desejo de liberdade
s�o demasiado fortes.
839
01:18:54,042 --> 01:18:56,125
Era altura de abandonar a Sic�lia.
840
01:18:56,584 --> 01:18:59,167
A etapa seguinte � novamente N�poles.
841
01:19:09,292 --> 01:19:12,042
As feridas do corpo
s�o f�ceis de suportar,
842
01:19:12,125 --> 01:19:14,417
a quem tem dentro de si
feridas bem mais amargas.
843
01:19:24,918 --> 01:19:26,792
N�o h� l�gica na ira,
844
01:19:31,417 --> 01:19:33,918
e talvez nem haja l�gica na esperan�a.
845
01:19:34,999 --> 01:19:37,834
E no entanto,
eu sinto a for�a de ambas em mim.
846
01:19:45,834 --> 01:19:47,542
� tempo de procurar paz.
847
01:19:48,250 --> 01:19:50,292
� tempo de recuperar a liberdade.
848
01:19:52,751 --> 01:19:54,751
Ou talvez seja tempo de morrer.
849
01:20:07,667 --> 01:20:12,417
Caravaggio regressa a N�poles.
� como um ref�gio, um porto seguro.
850
01:20:13,459 --> 01:20:14,999
Tudo parece correr lindamente.
851
01:20:15,042 --> 01:20:18,834
Vai viver no Pal�cio em Chiaia,
de Costanza Colonna.
852
01:20:19,209 --> 01:20:21,667
� tratado com honras, rever�ncia.
853
01:20:22,459 --> 01:20:23,959
� muit�ssimo bem tratado.
854
01:20:24,250 --> 01:20:26,751
� contactado
por ilustres coleccionadores,
855
01:20:26,834 --> 01:20:30,334
e ele pr�prio parece viver
um verdadeiro renascimento.
856
01:20:32,292 --> 01:20:34,334
E a vida decorre agradavelmente.
857
01:20:34,417 --> 01:20:38,584
Havia ali uma taberna muito frequentada
pelos intelectuais da �poca,
858
01:20:39,083 --> 01:20:41,584
um local chamado
Locanda del Cerriglio.
859
01:20:41,667 --> 01:20:44,417
E Caravaggio costumava ir �quele s�tio.
860
01:20:44,501 --> 01:20:48,375
Que era um - como dizer? -
um local de moda, como se diria hoje.
861
01:20:48,792 --> 01:20:53,918
E ali volta a acontecer
algo que n�o devia ter acontecido.
862
01:20:57,083 --> 01:20:58,125
Rebenta uma disputa.
863
01:21:00,667 --> 01:21:02,542
N�o se sabe porqu�,
864
01:21:02,626 --> 01:21:07,375
mas tem-se a certeza de que Caravaggio
sai de uma verdadeira agress�o
865
01:21:07,999 --> 01:21:09,918
com a cara toda negra e inchada,
866
01:21:09,999 --> 01:21:13,709
a ponto de se espalhar pela cidade
a not�cia de que morrera.
867
01:21:16,125 --> 01:21:17,999
Na verdade, n�o fora morto,
868
01:21:18,792 --> 01:21:23,667
mas a julgar pelo quadro
"David Com a Cabe�a de Golias",
869
01:21:23,999 --> 01:21:26,250
pode ficar-se com uma ideia
daquilo que aconteceu,
870
01:21:26,334 --> 01:21:30,876
porque Caravaggio neste quadro memor�vel,
talvez a sua �ltima obra-prima...
871
01:21:31,709 --> 01:21:33,626
representa-se a si mesmo
872
01:21:33,709 --> 01:21:38,667
na cabe�a decapitada do gigante
Golias, segundo a narrativa b�blica.
873
01:21:42,959 --> 01:21:48,042
O jovem David tem na m�o
a cabe�a de Golias, decapitada.
874
01:21:48,876 --> 01:21:49,999
E mostra-a...
875
01:21:50,999 --> 01:21:52,959
ao p�blico, a n�s.
876
01:21:52,999 --> 01:21:55,292
Num gesto de vencedor.
877
01:21:58,584 --> 01:22:00,751
Mas olha para ela,
878
01:22:01,417 --> 01:22:08,375
com uma express�o que - atrevo-me
a dizer - revela melancolia, compaix�o.
879
01:22:11,167 --> 01:22:14,167
No fundo,
sobre a cabe�a de Caravaggio,
880
01:22:14,918 --> 01:22:17,417
pendia ainda o ex�lio definitivo,
881
01:22:17,709 --> 01:22:21,125
que podia levar
� sua pr�pria decapita��o.
882
01:22:21,209 --> 01:22:24,999
E assim, ele, representando-se
na cabe�a de Golias,
883
01:22:25,542 --> 01:22:28,959
representa-se como se a condena��o � morte
tivesse sido executada,
884
01:22:28,999 --> 01:22:31,751
e ele tivesse sido decapitado.
885
01:22:35,959 --> 01:22:37,375
A pena de morte...
886
01:22:37,999 --> 01:22:39,501
� justo infligi-la?
887
01:22:39,584 --> 01:22:41,626
� digna do homem, do ser humano?
888
01:22:42,334 --> 01:22:46,751
� como se o quadro de Caravaggio
fosse uma resposta a este eterno dilema.
889
01:22:47,501 --> 01:22:52,709
E a resposta � que a pena de morte
n�o se pode infligir.
890
01:22:53,083 --> 01:22:55,459
Porque infligir a morte n�o � uma pena.
891
01:22:55,834 --> 01:22:57,501
A pena � viver.
892
01:23:16,876 --> 01:23:20,167
O artista desfigurado
e parcialmente cedo pela agress�o
893
01:23:20,250 --> 01:23:22,042
sente-se sob ass�dio.
894
01:23:22,375 --> 01:23:24,751
Os pensamentos de morte
acompanham-no sempre.
895
01:23:25,375 --> 01:23:26,792
N�o lhe d�o tr�gua.
896
01:23:30,501 --> 01:23:35,250
Na vida de Caravaggio acontece
algo de importante, de bel�ssimo.
897
01:23:35,876 --> 01:23:37,999
Recebe uma comunica��o
898
01:23:38,042 --> 01:23:41,918
que parece sugerir que o ex�lio definitivo
vai ser revogado.
899
01:23:43,250 --> 01:23:48,375
Finalmente, Caravaggio pode regressar
aos dom�nios da Igreja.
900
01:23:50,250 --> 01:23:55,999
Embarca numa "felucca",
um barquinho que o levar� a Roma,
901
01:23:56,083 --> 01:23:59,042
mas, na verdade,
inicia-se ali a trag�dia.
902
01:24:02,209 --> 01:24:07,250
O Mestre carrega as suas obras,
aquelas que fez recentemente,
903
01:24:09,959 --> 01:24:13,959
mas quando chega a Porto Ercole,
� interpelado e detido.
904
01:24:14,542 --> 01:24:15,999
A "felucca" distancia-se.
905
01:24:19,250 --> 01:24:22,542
Reza a lenda que o Mestre,
desesperado, na praia,
906
01:24:22,876 --> 01:24:27,209
tenta seguir a barca que j� partiu,
que nunca mais alcan�ar�.
907
01:24:31,792 --> 01:24:36,167
Contam os historiadores que foi atacado
por uma febre de mal�ria.
908
01:24:36,584 --> 01:24:39,709
O seu corpo desapareceu,
n�o h� nenhum t�mulo.
909
01:24:40,209 --> 01:24:45,125
De repente, acaba tudo,
a 18 de Julho de 1610.
910
01:25:21,959 --> 01:25:23,417
Vejo a luz.
911
01:25:41,042 --> 01:25:43,459
Sinto-me como se despertasse
de um longo sono.
912
01:25:56,250 --> 01:25:57,626
Finalmente, percebi.
913
01:26:05,375 --> 01:26:06,751
Resistir.
914
01:26:08,083 --> 01:26:09,292
Arriscar.
915
01:26:10,501 --> 01:26:11,542
Viver.
916
01:26:11,959 --> 01:26:12,999
Morrer.
917
01:26:13,918 --> 01:26:14,959
Combater.
918
01:26:16,209 --> 01:26:17,584
Procurar a paz.
919
01:26:35,209 --> 01:26:38,459
Penso que n�o h� nada, nas trevas
920
01:26:38,959 --> 01:26:41,584
e tudo existe... na luz.
921
01:26:44,626 --> 01:26:45,792
Eu escolho a luz.
922
01:28:29,250 --> 01:28:32,125
Tradu��o SARA DAVID LOPES
923
01:28:32,167 --> 01:28:34,083
Legendagem IL SORPASSO
924
01:31:00,959 --> 01:31:02,876
FIM
83732
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