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Para Machenka

Um fotógrafo amador
e dois amigos

comentam uma seleção de fotos
tomadas mundo afora.

O BEST/ARIO
ou Cortejo de Orfeu

O Dromedário.

Com seus quatro dromedários,

Dom Pedro d'AIfarroubeira

percorreu o mundo
e o admirou.

Ele fez o que eu gostaria de fazer.

Se eu tivesse quatro dromedários

Prim eira Pane
O CASTELO

Fotografar e como caçar.

O instinto de caça
sem vontade de matar.

É a caça dos anjos...

A gente açoda, mira, atira

e clique!

Em vez de um morto,
faz-se um eterno.

E tem algo mais ainda:

Um escultor eternizou
certo rosto com certo olhar.

Sua foto eterniza
seu olhar sobre este olhar

E eu olho a foto que olha.

Uma arte inferior, entao:

a arte de olhar a arte

Nem superior nem inferior, irmaos!
Arte e arte.

Não ha de que vangloriar-se.

É como uma nacionalidade.

Um chinês corcunda
não deixa de ser chinês.

Há a vida e seu duplo.

A foto pertence
ao mundo do duplo.

É aí que mora o perigo.

Ao acercar-se de rostos

você pensa compartilhar
a vida e a morte

de faces vivas.

E não e bem assim.

Se algo é compartilhado,
e a vida e a morte de imagens.

Mas podemos modestamente
dizer algo sobre a foto:

ela e prazerosa.

Tantos me agradeceram sabendo
que nunca veriam suas fotos.

Ate em situações estranhas.

Mulher no salão de beleza,
por exemplo.

A baronesa Staffe condena
mostrar-se assim ao marido.

Isso e Paris, Babilônia.

Mas em Pyongyang, Coreia,
riram quando eu entrei.

gritando e empunhando tesouras?
Misterio!

"Não entendo estes mistérios,
entao finjo organiza-los.“Jean Cocteau

É o lema de todo fotografo.

Trapaceamos, e verdade.

Entre o Ártico e o Neguev,
muita coisa acontece.

O sol desponta, por exemplo.

Como nas fotos surpresa
levando ao sentimento de posse,

Como se tivéssemos organizado
aquelas auroras.

A sensação de unir o mundo,
reconcilia-Io,

igualar seus fusos horários.

Deve ser nostalgia do Éden,

a mesma hora em toda parte.

Amo filmes que te levam
de uma aurora a outra.

dizendo:
“São 6 horas na Terra...“

“6 horas no Canal Saint-Martin.“

“6 horas no Canal de Gõta
na Suécia.“

“6 horas em Havana.“

“6 horas
na Cidade Proibida de Pequim.“

Aurora em Bruxelas

em Praga

em Teerã,

e Berlim.

O ultimo transeunte noturno
no adro da Notre-Dame,

e os primeiros do dia
numa rua de Amsterdã.

Já há muita gente
no Passeio dos Ingleses,

mas so um chinês
no Passeio dos Chineses.

As fontes da Villa d'Este
jorram com aquelas de Roma

As lindas ninfas
da Piazza Esedra.

Um trem chega a Estação Ciotat.

Um trem chega em Jesuralem.

Uma estação de subprefeitura
para a Jerusalém terrestre.

Trens limpa-neves
esperam na Estação Kiruna.

Da Estação de Tóquio
sai o trem mais rápido do mundo.

Ele cruza trens de periferia
com japoneses sonolentos,

ja esgotados,
devorados pela cidade.

Ha novos paineis
no metrô de Paris

e letreiros cabalisticos
no funicular de Lausanne.

Manifeste sua i ntençao

Um porco iugoslavo
considera o dia que começa.

Em Paris, moças se apresentam
num programa de calouros.

Em Santiago de Cuba,
cirurgia a coração aberto

Santiago,
os corpos mais livres do mundo.

O jogo da rua começa.

Das calçadas de Santigo,
as calçadas de Tel-Aviv

e aquelas de Moscou.

Num estúdio da Mosfilm
Tatiana Lavrova se prepara.

Em Havana, ha distribuição
de “peças capitalistas".

peças avulsas de carros
franceses e americanos.

Como este modelo anunciado,
e jamais chegado.

Um cão sovietico em Moscou.

Um cão burguês em Paris.

Uma perfumaria de Oslo
invoca a Nefertiti de Berlim.

Loteria em Cuba,

loteria em Lisboa,

para o japonês, sua loteria
especial, o Pachinko.

Chineses vão a manifestação.

Coreanos vão a manifestação.

Cruzam carregadoras de fardos,

juncos olhudos.

O jogo diario começa.

Em todas as multidões,
há pessoas diferentes.

Distinguem-se por suas vestes,
seus uniformes.

Do alto dos balcões dos palacetes,
escutam a voz incansavel

dizendo:

“Um dia tudo isso lhes pertencera."

“Fechado para reparos".
Isso e Moscou.

O prédio dos sputniks e vostoks
na Exposição Industrial.

Os coreanos aplaudiam isso
como vitórias do socialismo.

E agora?
Vitórias do revisionismo?

Um dia vai ter marcianos ai.
Tenho certeza.

Por ora, so descrições
de foguetes, estações espaciais.

É um espaço fabuloso.

Isso não e Nova Iorque.

É o Museu do Ar em Meudon...
Os marcianos.

O que e isso agora?

O que e isso agora?

O outro lado da historia.

A mesma história.

Não, Nungesser e Gagarin
não e a mesma coisa.

Isso e romantismo!

Você tinha 10 anos no tempo
De Nungesser e François Coli.

Não, por uma simples razão:

Nenhum cão atravessou
o Atlântico de avião.

Que quer dizer “revisionismo"?

É aí que os cosmonautas
compram seus cães?

Cosmonautas, não sei,
mas os pedestres sim.

É a feira de animais de Moscou.

Por que gosto tanto dos russos?

Deve transparecer nas minhas imagens.

Mas eu preciso explicar.

Não sou ingênuo.

As pessoas que fotografei
tão boas e gentis

podem aplaudir a condenação
de um escritor a 7 anos

por incomodar velhas raposas.
As mesmas pessoas

que brincam de roda voadora
e pistola d'agua, como crianças.

Foi epico, o lance
das pistolas d'agua.

Quando as importaram
da Alemanha Oriental

não se podia visitar um amigo,
sem tomar jatos d'agua na cara.

Já faz um tempo.
Lembre-se, Varvara.

Tinha o mausoleu em dois lugares

Descia-se o Volga no Joseph Stalin

Mais um inverno
e os Chapeizinhos Vermelhos

cruzariam o Parque Gorky
sem topar com bigodes.

Ai desembarcaram 10 mil,
no Festival da Juventude,

de um barco chamado Molotov
ao deixar Leningrado,

e Baltika ao regressar.

Melhor que as pistolas d'agua.

Via-se nas ruas
pequenos sistemas planetarios:

Ao centro, um estrangeiro,
cercado de moscovitas brincalhões

Tudo o que destruiria preconceitos
dos russos sobre estrangeiros

e vice-versa,

ja estava presente
naquele verão.

Quando pela primeira vez
ouvimos Noites de Moscou

de Soloviov—Sedoi.

Quando milhares de pessoas
descobriram a gentileza russa.

a curiosidade russa

E esse peito russo da amizade
que investe como a cavalaria.

Pela primeira vez também vimos

moças se divertindo
com coquetismos estrangeiros.

E pela primeira vez desde a Guerra,
a bandeira dos EUA desfraldada.

Ela voltaria, menos inocente,
na Exposição EUA de 1959.

Operação Sedução.

Abraham Lincoln se casou
com Marilyn Monroe.

E tiveram muitas geladeirinhas.

Os russos levaram tudo a sério,
com uma ponta de inveja,

porem com mais senso crítico
do que se esperava.

Teve Marian Anderson e Mickey,
que deu uma remoçada.

Homens preferiam ver carros,
e mulheres preferiam a moda.

Como russos gostam de ler,
havia uma linda biblioteca.

Tinha até A Questão
de Henri Alleg.

Cara lisa: “Nos, americanos,
não faríamos guerras coloniais."

O momento da alegria era,
certamente,

a doação de cumbucas plasticas,
rebentos de uma grande máquina.

E o momento da perplexidade,
e claro,

a Exposição
de Arte Contemporânea

Queria que vissem um pedaço
do cargueiro Le Coubre

that exploded
que explodiu
no porto de Havana.

Cuba fez dele um monumento,
so mudando a perspectiva.

Eu poderia fazer Ioas
ao olhar russo

Mas se digo o que penso,
me tratarão de racista.

No entanto, e verdade.
Ha uma linha do olhar

como há uma linha da vinha.

Não ha olhar americano
ou escandinavo.

Mas há um olhar negro,

um olharjudeu,

um olhar russo.

Se eu disser que a luz brilha
nos pobres e morre nos ricos

Os russºs me repreenderão.

E tambem o olhar dos ícones.

Falemos deles.

Um povo que teve essa arte,
que tem esse olhar,

e o resultado e

a Galeria Tretyakov.

É estranho que Vikings soubessem
o que era uma forma.

E não so a forma util,
mas tambem a deslumbrante,

E que acadêmicos soviéticos
nem suspeitem que isso exista.

Bom, de fato agora tem la
uma arte pop oficial.

Ate bacana,
mas mesmo assim...

Eu poria todos os academicistas
num grande barco...

- E o afundaria?
- Não!

O rebocaria a Cinfuegos, Cuba.

La tenho um amigo,
Samuel Feijoo,

diretor de uma escola rural.

Tai a escultura de um camponês.

Ele a chama A Fome,

com um comentário:
“a fome não tem rosto".

E essa ai:

O Pensamento.

Sabe,

isso não e apanagio
do realismo socialista.

Vale para consumidores
de Jocondas

A camponesa dalarna cola
recortes de carros na cama

por necessidade:

o impulso artístico e mais autêntico
que pendurar copias de Van Gogh,

- sobre uma cômoda Levitan.
- Você fala do pintor.

Naturalmente.

Não há só a Tretyakov
em Moscou.

O Museu Pouchkine tem
incriveis Picasso e Renoir.

E la que vão os russos
tomar conhecimento da pintura.

As vezes, eles dizem
não entender Picasso.

Mas eles ousam
chegar e perguntar

"E ai?“

E Picassso e obrigado
a responder.

Enquanto que, no geral,
Picasso nem liga

para a aprovação
dos entendidos parisienses.

Haja falação. ..

mas que diria ele,
se fosse russo, como eu?

Quando ele fotografa propagandas,
camisetas com Brigitte Bardot,

Lucia Bose e Marina Vlady
estampadas,

a versão sovietica da Vespa
ou uma vendedora da rua Gorky,

quando ele acha uma orquestra
de jazz em plena Siberia,

ou um self-service
na periferia de Moscou.

por mais que ele delire sobre
olhar russo e alma eslava,

ele pensa como um europeu.

Ele pensa: padrão de vida,
liberalização,

conforto.

Um giro rumo
a sociedade de consumo

que ele tanto ironizara
ao vê-Ia materializada.

Entre burgueses que adorariam
ver a vergonha da familia

andar de novo na linha
e a nova romantica geração

que salta o estalinismo

e sonha com um impossivel 1917,

entre os russos
que merecem um refresco

e os chineses que os acusam
zombeteiramente,

nos, filhos de emigrados,
nos encontramos sos.

Aprendemos de outros países,
de outras linguas,

Apesar de tudo,
guardamos no peito,

uma pátria imaginaria.

que nos torna exigentes,

criticos, quase injustos.

Quando a visitamos,

não e para admirar
sua ocidentalização crescente,

mas para estender
as dimensões de um pais,

a ternura que nos foi ensinada

entre pais condecorados,
mães matracas

e irmãzinhas de trança.

Ah, tai algo diferente.
Outro desfile de moda,

mas na fábrica, durante a pausa.

- Moda masculina tambem?
- Sim.

As mulheres bem ligadas
na moda masculina

mas os homens logo indiferentes
à moda feminina.

Uns toscos!

Você gosta de Moscou?

Detestei da primeira vez.

Fora os monumentos, a cidade
não e latão... bonita.

E ai, um dia, tudo mudou.

Entendi que a cidade não e
nada sem seus habitantes.

Muitas cidades ficariam otimas
sem os seus.

Se você não tem ligações,
daquelas bem verdadeiras,

ligações com russos,
com moscovitas,

você passa ao largo.

E como a piscina deles,
de água quente em meio a neve,

o encontro de dois mudos,
a fronteira entre

verão e inverno.

Agora, eu amo Moscou.

Amo mesmo!

Talvez seja

a unica capital a qual digo

eu te amo...

Amo o lado campestre
no ritmo das ruas.

A praia do Dynamo não e Coney Island,
e a Grande Jatte!

E o metrô e o Palácio das Miragens!

E tambem a única cidade
em que se possa respirar,

estando cercada de jardins e parques

aonde as pessoas vão ver

peras e maçãs de verdade,

como nos admiramos
os Braque e os Cezanne.

Até as mesas de xadrez do Parque Gorky
lembram nupcias campestres.

Grande Jatte, Palácio das Miragens,
Roda Gigante...

Todos temos o mito de 1900, acho.

A imagem de uma época
em que havia espaço,

tempo para se olhar
e respirar.

O lado 1900 de Moscou e a pureza
das gravuras de coleções infantis

mas com filhinhas de operários

nos trenos
das garotinhas modelo!

Isso ainda e Moscou?

Não, e um mosteiro russo

cujo sineiro teria sido
marinheiro no Potemkine.

Isso não e verdade.

Não e mesmo.

Nada aqui e muito verdadeiro,
a começar pelos monges.

- Tem muitos?
- Um punhado.

Eis tudo o que resta

num refeitorio construído
para várias centenas deles.

Não vá logo culpando
a propaganda marxista ateia.

O mosteiro e russo,
mas não fica na Russia.

Fica no Monte Athos, na Grécia.

Os mosteiros gregos do entorno
estão tão decrepitos quanto.

“Havia caminhado toda a manhã

“e cheguei a Xeropotamou
no horror do começo da tarde

“quando a sesta lembra mais a morte
que o verdadeiro sono.

“Os corredores eram arejados.

“Só vi ali uma sentinela,

“que logo sumiu.

“Mais tarde, um cozinheiro
me deu olivas e peixe seco,

“o trivial da comunidade.

“Outro monge escolhia feijão.

“Os monges dormiam em suas celas,
os corredores estavam vazios.

“Vi pendurada uma pintura na'i've
descrevendo um milagre.

“Noutra parede,

“o retrato de Metaxas, o ditador
fascista morto 12 anos antes.

“Conheci um jovem monge,

“um dos raros jovens
nesse império de velhinhos.

“Ele vinha das ilhas.

“Um ermirtão me ofereceu
sua ermida.

“Declinei.

“Vi uma gata numa mesa

“Ultraje a regra.

“Mulheres e bichos fêmea
são proibidas na península.

“Quando se pode proibi-Ias.

“Na verdade, a regra diz:

“ “Faces imberbes são proibidas”

“Da-se um jeitinho.

“Todos os mosteiros
têm jovens noviços,

“mas sua sombra de feminidade
não constitui alivio,

“muito pelo contrario."

Aqui mulheres não saem na porrada
por um Pope.

como no Museu do Ateísmo,
em Leningrado,

onde explicam que não ha
Deus no céu, pois,

citação, cosmonautas não o viram!

“Os monges do monte Athos
estariam a frente dos cosmonautas?

“Um capitolio da espiritualidade europeia
e ora um lugar agônico.

“Os ritos continuam.
E as imagens estão ali.

“Mas as faces que ai encontramos

“não remetem ao Pantocrator

“e nem mesmo
ao Cristo crucificado.

“Talvez ao Cristo de Getsêmani

“ao Cristo abandonado."

É estranho.

Ninguém mais crê em Deus,

mas todos falam do Cristo
com certa intimidade.

Ele é citado, imitado,
encontram-Ihe semelhanças.

Os japoneses fizeram um Nõ
sobre a morte do Cristo

o primeiro Nõ cristão da historia.

“Já não queimam missionários
no Japão: um progresso.

rumo a indiferença.

Fidel Castro mandou pichar:

“Trair os pobres
e trair o Cristo."

O Concílio pensaria o mesmo.

Poderia ser útil ter um Cristo

em sua própria casa

“Ponha um Cristo
na sua felicidade."

Como se,
mesmo sem precisar crer,

fosse cômodo ter alguem
em algum lugar

portando toda a miséria
do mundo.

Moramos no Castelo

Tem pior que a tirania:
o silêncio.

A distância entre
os que têm o poder

e os que não o tem.

A impossibilidade de comunicação.

A unica fronteira de raças...

e o Castelo.

Os pobres vivem
a sua sombra.

Crescem ali.

E quando abrem seus olhos,

como voltar a fecha-los?

Um dia vi pobres felizes.

Foi em Nanterre, na favela.

No primeiro dia
da Argélia independente.

Estavam felizes.

Um atimo de felicidade
por 7 anos de guerra

e um milhão de mortos.

No dia seguinte,
o Castelo continuava ali.

E tambem os pobres,
dia após dia.

E dia após dia,

continuamos a trai-los.

Não a demolição do Castelo

Segunda Paite
O JARDIM

- “Como se diz “elefante” em russo?
- "Slôn“.

Slôn. É obvio.

Pergunte ao elefante seu nome
e ele só poderá dizer:

"Slôn".

Então os elefantes são russos

O elefante de Moscou mora
num lugar maravilhoso.

Na Praça Dourov.

- Certo?
- "Dourov“.

Dourov foi um gênio que descobriu

que relações entre espécies
passam pela confiança.

Ela passa horas na jaula
do urso-lavador.

Ela ganha a confiança dele
e ele lava sua roupa suja

- Em casa.
- Em publico, pra agradar.

O trabalho vira outro brinquedo.

Se bem entendi,

Você e pelo adestramento
das crianças.

A confiança produziria

cidadãos lavadores como ursos.

Com a Lei da Selva,
damos um tiro no pé.

Tem também a Lei do Jardim.

A selva e o castelo dos animais,
mas o jardim deles,

poderia nos servir de modelo.
E isso?

Isso, como no teatro.
Lado Castelo, lado Jardim

- O que faz esse ai?
- Esta brincando.

Brincando com um gato.

O gato ja não brinca.
Morreu. Estrangulado.

Ha uma fórmula para o universo,

mas não para a infância.

Não se pode explicar
ao mesmo tempo.

o filhinho do rico

e o filhinho do pobre.

nem o pequeno
asiatico faminto

nem as irlandesinhas
meninas de rua.

nem os negrinhos,

nem a escolar persa
de bata negra,

nem a pequena arabe.

Não ha Crianças Unidas,

como não ha Nações Unidas.

Crianças são primeiramente
o que comem

e o que lhes ensinamos.

Bom seria uma pátria infante
acima de toda patria.

Uma classe infante acima
ou abaixo de toda classe

com base na confiança

mais absoluta.

Mas crianças não são patria.

São no máximo uma familia.

“A Grande Família Humana".

Certo, a humanidade
e uma familia.

E tambem os Atridas.

Eu amava a faceirice
de operarias coreanas.

Teriam outra relação com o trabalho?

Voltei a pensar nisso ao visitar
uma pescaria na Islandia.

A diferença entre
aquelas trabalhadoras

não residia no padrão de vida

nem numa imponderavel
felicidade.

Estava na relação ao trabalho.

Trabalho: uma carga

ou um sentido para a vida?

Necessidade opressora

ou necessidade compartilhada?

Uma carga ou uma montaria?

Pedi para acompanhar
a jornada de um trabalhador.

Naturalmente,
me arrumaram um herói.

Primeiro nos estudos, trabalho,
esporte: um chato.

Então não pedi mais nada.

Tentei descobrir sozinho
a doçura coreana

a alegria e a metamorfose
dessas asiaticas

que sozinha justificaria
todas as revoluções.

A guerra ainda estava presente.

Pouco bastava
para evocar suas cores e ecos.

Preservada nas memórias,
viva em imagens e lemas,

menos me espantou
descobrir sua presença

que descobrir... sua ausência.

Na malemolência de um homem.

No sorriso da que porta seu bebê
tal canguru distraido.

Na conversa animada
de camponeses na calçada

e no deslumbramento
que sempre sinto

frente a crianças
de olhos puxados.

Coreanos também são a beleza

e a ciência,

que vem de muito longe,

quando inventaram a imprensa
(antes de Gutenberg),

o couraçado (antes do Potemkine),

e suas mil maneiras de viver
e de pintar

que os japoneses tomaram

com sua mui conhecida gratidão.

Não jogo a Coreia eterna
contra a Coreia Popular.

Captei suas danças intemporais,
durante a pausa,

numa fábrica, num clube
de trabalhadores no Pacífico...

no tempo.

Só uma palavrinha,
antes de concluir sobre a Coreia,

Deixei este país onde
trabalhei e tive amigos.

Recebi telegramas de saudações,

imagens, revistas, brochuras,
mas nunca uma carta.

Já de Cuba eu recebo.
Todo mundo recebe.

Muitos tinhamos uma carta
recente no bolso

no ato público contra
a invasão da Baía dos Porcos

No palco, as celebridades

e muitos rostos conhecidos
na multidão.

Fixei uma mulher idosa,
com um passado militante

que pus-me a imaginar.

Mas assim mesmo,

sua presença nesse ato

e essa expressão tão tensa...

Ela tinha vivido uma época

para nós hoje submersa:

1917,

o Couraçado Aurora,

os marinheiros de Petrogrado,

a tempestade sobre a Ásia,

Ela pertencera a unica geração

cuja vida avançara passo a passo

com a Revolução,
arvore plantada na infância,

cuidada com paixão exclusiva

ate a injustiça.

Um dia, no entanto,

soube-se dos crimes de Stalin
e houve o cisma de Mao

O mundo socialista ja não era

o lugar da única fidelidade,
da única fraternidade.

Foi preciso enfrentar o pesadelo:

os herdeiros das duas únicas
revoluções populares do século XX

brigando por votos,
alianças e ate territorios,

enquanto alguns de seus irmãos

lutavam contra o inimigo comum.

Pois o inimigo não mudara

Aqui, na Europa, augures

a luta continuava
contra os mesmos.

A Polícia não se confundia

jamais onde quer que fosse

Imaginei o drama
vivido por essa mulher

o drama de milhões
de militantes pelo mundo,

que tudo haviam dado

a algo que eles criam
bem maior que eles mesmos

e que no fim das contas,
deles tirava sua grandeza.

Que divertidas manifestações chinesas!

Só redatores chineses
denegam o humor chinês.

Esta protestando so?

Rezando. Numa rua de Tóquio

Os japoneses se consideram
vítimas dos americanos.

Isso e problematico.

Uma bomba atómica em Berlim
inocentaria Buchenwald?

E ai? O que e?

Uma manifestação em Oslo
Chego em Oslo.

As Pussycats lá estão.

E o grande evento para os jovens.

Seus pais têm gostos mais clássicos.

Tudo aqui e luxo, calma

e nada de volupia.

Belissimos militares

portando os chapeis
mais estranhos do mundo,

de cadetes da Saint-Cyr
na Guerra de Secessão,

velam pelos Iazeres
de um povo repousado

e repousante.

Conformismo sem agressão,

algo sempre novo,

sempre envernizado,

ausência aparente
de distúrbios profundos,

de ameaças precisas.
Tudo isso Iustra e prepara

um povo amável
e bem-educado.

cujo lema pode ser:

“Informação...

“Demonstração.

“Cremação.“

Na copa da arvore escandinava,
a Suécia.

A primeira vista
uma obra-prima social humana

segundo os padrões atuais.

Vi um professor primario
que tinha três geladeiras.

Ha uma harmonia impar
nas relações de produção.

E o proletariado ali

não parece o que designamos
sob este termo.

Some a isso criaturas de sonho...

e cidades...
uma cidade de sonho

Estocolmo e um modelo de urbanismo.

A mais bela atriz de todo os tempos,

uma irresistível densidade poetica
nórdica no ar,

uma educação cívica na base

e uma Natureza circundante

e aquelas amaveis campónias

que eram estudantes em férias.

e ainda por cima

as mais belas paisagens.

Vejamos este escandinavo.

Ele tem tudo

o que 9 entre 10 humanos

nem ousam sonhar em ter.

Seu padrão de vida

e o horizonte de negros,
arabes, gregos, siberianos,

e ate de milicianos cubanos.

Ele tem tudo o que
as revoluções prometeram

e quando montam Brecht
para ele

gratuitamente, alias,

nos jardins de Estocolmo

ele não entende a mensagem.

O que mais lhes faz falta?

Algo essencial, suponho:

a imortalidade.

Eles já não esperam partir
nos barcos de pedra ancestrais.

É curioso, a morte, quando
não mais se crê na vida eterna.

Frente ao aniquilamento,

tornamo-nos exigentes,
queremos tudo e ja.

A horta dos cemitérios nórdicos
não pode ocultar a evidência,

sua felicidade não compensa
uma eterna ausência.

O probleminha que desbota
a vida escandinava...

talvez aceitável para a eternidade,

tem seus encantos,

mas não para uma só vida.

O troco do nada e a paixão.

A perfeição escandinava oferece
uma felicidade sem paixão,

não uma felicidade humana.

Talvez, pelos cemitérios, se possa
medir a paixão dos povos.

No Cemitério do Bloqueio, em Leningrado,

não tentam esconder a morte
sob as flores.

Sabem o seu preço.

Veja,

a tumba do filho de Gorky.

A tumba de Maiakovski.

A de Chekhov.

Ha mortos sem tumba,
como em Pompeia.

ou nos campos de concentração.

E tumbas sem mortos.

O SER HUMANO

Também tenho minha tumba
favorita.

A de Webern, em Mittersill.

O maior músico de nosso seculo

morto na soleira de casa uma noite
por um soldado ocupante,

só pra impor respeito
ao toque de recolher.

É estranho isso passar batido.

Um vizinho me mostra
o local exato.

Bom, foi um soldado americano.

E se ele fosse sovietico?

Evocariam o caso em cada
crise internacional.

Mas foi melhor assim.

O destino de Webern nunca foi

fazer alarido.
Nem na morte.

O homem que era puro canto
puro canto continua a ser.

Sei de um homem
que viveu sua morte.

Foi em Moscou,
no Festival da Juventude.

Bem que eu tinha visto
aquele rosto hungaro antes,

de olhar as vezes ausente...

Não vou fazer suspense:

o mundo todo tinha visto sua foto
nos tiroteios de Budapeste.

Disseram que eram policiais,
ele dizia ser soldado.

Parece que a nuança conta
nos dois campos.

Bom, ele sobreviveu

e viaja as democracias populares,

distribuindo uma propaganda
que conta sua própria morte.

Há quem conviva sempre
com a morte.

Vemos o ricto em seus rostos,

o inverso do sorriso,
presente em urnas funerarias

nas quais Samuel Beckett

aprisionou para sempre

um homem e duas mulheres.

Mas o jogo e injusto.

Mulheres têm uma relação especial
com a morte.

Não por serem mais corajosas,

ainda que o sejam,

ou mais pacientes,

o que também são.

Talvez por que saibam,
humildemente,

mui humildemente,

que talvez possuam
uma resposta possível.

Nos corredores dos museus,

nos sombrios e escuros salões

dos museus,

sob todos os pretextos

com todas as hipocrisias,

sob as mais divagantes formas,

os homens só buscam uma coisa:

a resposta a uma única questão:

todo o Desejo do mundo.

E outro tipo de museu.

Ele sabe a que veio.

O que esse aí escreveu?

Em três línguas:
a vida e' feia.

Das Leben ist langweilig.

E o mesmo em sueco, suponho.

Tem mais essa:

não gosto de ninguém.

Estamos um tanto longe do jardim.

O que importa e que ele exista.

E atraves de nossa irrefutavel
parte animal.

Não e um refúgio.

Esta em nós, tão verdadeiro
e cruel quanto a vontade de viver.

Ha sim uma Lei do Jardim,

que se expressa
em gestos simples,

nos mais simples gestos.

Não e a Idade do Ouro
nem o Paraíso Perdido.

talvez onde campónias dalarnas
cantaram o Cântico dos Cânticos.

Sim, quando olhamos em volta,

ha horror, ha loucura,
há os monstros...

Mas já ha uma guerrilha,

uma felicidade clandestina

uma Sierra Maestra da ternura.

Algo que avança....

atraves de nós, apesar de nós,

graças a nós,

quando temos a graça...

e que anuncia,
não se sabe para quando,

a sobrevivência dos mais amados.

Se eu tivesse quatro dromedários
1966

Um filme produzido por

Voices

escrito e fotografado por
CHRIS MARKER

Legendado por Emerson Xavier da Silva